segunda-feira, julho 31, 2006

Jogo "FOTODICIONÁRIO"

No post de 25 de Julho foram dadas as regras para este jogo.
Hoje foram colocadas as fotografias dos primeiros participantes.
Por anomalia do blog, os links que ligam os títulos das fotos aos sites dos seus autores não estão a funcionar. Por isso aqui ficam:
Dulce: www.paralemdemim.blogspot.com
M. : www.outrostemas.blogspot.com
Mónica: www.1668mm.blogspot.com
S. : www.instantaneos.blogspot.com
T. : www.soprarpalavrasaovento.blogspot.com

Jogo Fotodicionário ("Dúvida" por T.)

Jogo Fotodicionário ("Dúvida" por S.)

Jogo Fotodicionário ("Dúvida" por Mónica)

Jogo Fotodicionário ("Dúvida" por M)

Jogo "Fotodicionário" ("Dúvida" por Dulce)

Para lá da escada


















Foto de M

sexta-feira, julho 28, 2006

Uma enorme vontade de conversar


















Foto de M

Arnold Bennett: como gosto de o ler!


















Foto de M


Assim começa o Capítulo I do livro The Old Wives’ Tale de Arnold Bennett:


« Those two girls, Constance and Sophia Baines, paid no heed to the manifold interest of their situation, of which, indeed, they had never been conscious. They were, for example, established almost precisely on the fifty-third parallel of latitude. A little way to the north of them, in the creases of a hill famous for its religious orgies, rose the river Trent, the calm and characteristic stream of middle England…»


E o interessante prefácio de Arnold Bennett para o mesmo livro, em que ele explica o que o levou a escrevê-lo:


« In the autumn of 1903 I used to dine frequently in a restaurant in the Rue de Clichy, Paris. Here were, among others, two waitresses that attracted my attention. One was a beautiful, pale young girl, to whom I never spoke, for she was employed far away from the table which I affected. The other, a stout middle-aged managing Breton woman, had sole command over my table and me, and gradually she began to assume such a maternal tone towards me that I saw I should be compelled to leave that restaurant. If I was absent for a couple of nights running she would reproach me sharply: “What! You are unfaithful to me?” Once, when I complained about some French beans, she informed me roundly that French beans were a subject which I did not understand. I then decided to be eternally unfaithful to her, and I abandoned the restaurant. A few nights before the final parting an old woman came into the restaurant to dine. She was flat, shapeless, ugly and grotesque. She had a ridiculous voice and ridiculous gestures. It was easy to see that she lived alone, and that in the long lapse of years she had developed the kind of peculiarity which induces guffaws among the thoughtless. She was burdened with a lot of small parcels, which she kept dropping. She chose one seat; and then, not liking it, chose another; and then another. In a few moments she had the whole restaurant laughing at her. That my middle-aged Breton should laugh was indifferent to me, but I was pained to see a coarse grimace of giggling on the pale face of the beautiful young waitress to whom I had never spoken.
I reflected, concerning the grotesque dinner: “The woman was once young, slim, perhaps beautiful; certainly free from these ridiculous mannerisms. Very probably she is unconscious of her singularities. Her case is a tragedy. Once ought to be able to make a heart-rending novel out of the history of a woman such as she.
Every stout, ageing woman is not grotesque − far from it! − but there is an extreme pathos in the mere fact that every stout ageing woman was once a young girl with the unique charm of youth in her form and movements and in her mind. And the fact that the change from the young girl to the stout ageing woman is made up of an infinite number of infinitesimal changes, each unperceived by her, only intensifies the pathos.
It was at this instant that I was visited by the idea of writing the book which ultimately became “The Old Wives’ Tale”.»

The Old Wives' Tale, Arnold Bennett, Penguin Books

terça-feira, julho 25, 2006

Um jogo que a T, o S e a M vão iniciar e aberto a quem queira participar

Jogo “Fotodicionário”

Explicação do jogo:

1. É rotativa e semanalmente sugerida uma palavra pelo S. do Diafragma (www.instantaneos.blogspot.com), pela M. do Palavra Puxa Palavra (www.outrostemas.blogspot.com) e do Fotoescrita (www.fotoescrita.blogspot.com) e pela T. do Palavras ao Vento (www.soprarpalavrasaovento.blogspot.com) e do Por um fio (www.por-um-fio-invisivel.blogspot.com).

2. Cada participante deverá então tirar uma fotografia que, na sua visão, representa a referida palavra.

3. Quando ao fim de uma semana todos os participantes tiverem as fotografias, elas deverão ser enviadas para o mail da M. (mmrgcasa@gmail.com) que então as colocará no Palavra Puxa Palavra, devidamente identificadas com os nomes dos seus autores.

4. A primeira palavra sugerida pelo S. foi “DÚVIDA”.

5. Quem quiser participar terá que estar atento ao que vai sendo colocado no Palavra Puxa Palavra, ou no Palavras ao Vento, e enviar as respectivas fotografias no prazo estipulado.

6. O prazo para apresentação da fotografia que se refere à palavra “DÚVIDA” é até ao dia 1 de Agosto.

A pedido da Sofia volto a colocar aqui uma história que escrevi há uns anos

Um Pássaro de Asas Azuis

A manhã nascia quente e luminosa, entrando descarada pela persiana semiaberta do quarto de Mercedes e detendo-se insistente no rosto da rapariga.
Sonolenta ainda, Mercedes deu uma volta rápida na cama, refugiando a cabeça debaixo do lençol branco de algodão macio. No seu gesto habitual de segurar sonhos acomodou os braços por baixo da almofada e logo sentiu algo estranho que a fez despertar daquela dormência arrastada. Não encontrava as mãos e os braços pareciam não ter fim... Abriu os olhos, procurando compreender o que se passava consigo, para de imediato os fechar. Devo estar a sonhar! Abriu-os novamente, percorreu o corpo com um movimento rápido dos braços e das mãos e deu um grito de pavor. Mas que corpo era aquele que se colara ao seu?!
Atirou impetuosamente o lençol e o cobertor de lã fina para trás e, como se fugisse de si própria, ergueu-se de um salto. Com passos pequenos e saltitantes (por mais que se esforçasse não conseguia mover-se de outro modo), deslocou-se até à janela e puxou a fita da persiana, abrindo-a por completo. Sentindo no entanto alguma dificuldade em manuseá-la, atribuiu-lhe a causa ao entorpecimento que constantemente a invadia em manhãs de preguiça. Imediatamente se lembrou da mãe e das suas interpretações a respeito do que para si nada mais era do que a consequência dos sonos adiados da juventude. Ali estavam elas, uma vez mais, a atormentarem-lhe o espírito adormecido, eternamente as mesmas palavras que a aborreciam, sempre que se cruzava com a mãe ao levantar e ela lhe espiava os passos trôpegos, ambas a caminho da cozinha e do pequeno-almoço: “Dormes toda enrolada, filha! Pareces um novelo de lã!”. Depois vinha todo aquele rol de recomendações sobre as posturas correctas do corpo, e mais isto e mais aquilo... Ao que Mercedes se limitava a responder: “A mãe parece uma fisioterapeuta! E como é que quer que eu me aperceba que estou enrolada? Se estou a dormir!...”.
Mercedes olhava-se agora no espelho grande colocado por detrás da porta do guarda-vestidos: encontrou nele a imagem de um pássaro de asas azuis, exactamente da sua estatura. Será que estou a ficar louca? Bem sei que gosto de me mascarar... mas não estamos no Carnaval... Ansiosa, virou a cabeça para trás: não, não havia mais ninguém ali! Voltou-se novamente para o espelho, tocou a imagem nele reflectida, apalpou o seu corpo de alto a baixo, freneticamente, e sentiu uma angústia incontrolável a invadi-la. Seria este o tal “espelho mágico” das histórias que a avó Margarida lhe contava em criança antes de adormecer? Mas nesses tempos idos da sua infância não costumava assustar-se... Só não gostava da bruxa da “Branca de Neve” quando ela se olhava no espelho e lhe perguntava com aquela voz horrível de meter medo: “Quem é a mulher mais bonita do mundo?”. Estremeceu.
Observou-se de novo no espelho, de soslaio... tocou-se ao de leve, investigou depois minuciosamente cada milímetro do seu corpo. Não, não havia qualquer dúvida: no lugar da pele tinha penas macias e brilhantes; no lugar da boca carnuda e rosada um bico amarelo, rijo, seco, pontiagudo; no lugar dos dois pés descalços duas patas acinzentadas que mais pareciam o tripé da máquina fotográfica com que o pai passava horas a tirar fotografias às abelhas.
Que horror! O que é que me está a acontecer?! Mas eu sou uma pessoa, uma rapariga, eu tenho... Onde está ele? Eu tinha um brinco... Mercedes aproximou-se mais do espelho e abanou a cabeça com aquele gesto muito seu de soltar os cabelos de maneira a pôr em evidência a orelha esquerda onde habitualmente prendia os brincos. Saltaram-lhe dos olhos lágrimas de desespero que, ao correrem livres, lhe humedeceram as penas azuis. O meu brinco, ao menos o meu brinco! E o bico que fora boca abria-se-lhe e fechava-se-lhe no esforço inglório de libertar o seu pensamento. Com um misto de desespero e determinação abanou então repetida e furiosamente a cabeça, mantendo o olhar fixo no espelho. Respirou de alívio quando, por fim, viu surgir de entre o emaranhado de penas a minúscula pérola branca suspensa no entrelaçado de prata fina do pingente. Ah! Sentiu nesse instante um desejo incontrolável de exprimir com palavras a satisfação que lhe ia na alma, mas depressa se apercebeu que elas tinham ficado prisioneiras daquela horrível protuberância amarela que lhe desfeava o rosto. Tentou em vão esboçar um sorriso: ficou-lhe encravado na imobilidade córnea do bico que não se abriu. Agora é que se aplicava bem aquela expressão “sorriso amarelo”, gracejou Mercedes silenciosamente com os seus botões, tentando assim suavizar a aflição que a dominava.
Hoje não podia ir às aulas. Que diriam os colegas da faculdade se a vissem naquele estado? Será que estou com alucinações? Tenho que telefonar rapidamente ao meu amigo Rafael, a pedir-lhe o número do telefone do tal psicoterapeuta que ele conhece... O pior é se ele nota algum som esquisito na minha voz... Vou falar o menos possível... Digo-lhe apenas que não me sinto bem... nem lhe refiro que estou transformada em pássaro de penas azuis, senão julga que estou doida varrida. Se por coisas com menos importância ele já pensa que a minha mente voa demasiado e que qualquer dia fico a morar nas nuvens... que diria agora?
“Toma nota: Dr. Bartolomeu Todouvidos. Rua das Angústias, número 8, 1º andar. Falei com ele há instantes e ele confirmou que pode receber-te hoje à tarde. Tens sorte, um dos doentes dele vai faltar, porque está doente. Com outra doença, claro!...” E ria-se, o safado do Rafael, que ele não entende estes males: Mercedes rememorava a conversa com o amigo e procurava fixar a morada que ele lhe tinha dado.
Parada no patamar da porta de entrada do seu prédio, Mercedes ganhava coragem para sair de casa. Não convinha demorar-se por mais tempo: ir a pé até à paragem de autocarro, ainda por cima aos saltinhos... depois, a dificuldade em subir os degraus do autocarro... Tinha que contar com todos esses contratempos. Ah, e como havia de picar o bilhete? O melhor seria ir a pé, porque pelo que o amigo lhe tinha dito, a casa do psicoterapeuta não ficava muito longe dali. Estava decidida: caminharia ao longo da rua, junto das paredes dos prédios, o mais discretamente possível, para que ninguém reparasse nela.
Mercedes seguia agora pelo passeio de calcário branco, os olhos poisados no chão, atenta aos buracos e às frequentes pedras soltas causadoras de entorses e de outras complicações que ocupam as horas dos ortopedistas de serviço nos hospitais. Assim caminhava ela, qual ladrão acossado, sentindo-se objecto de mil olhares intrigados; imaginando comentários nos sussurros daqueles com quem se cruzava; inventando perguntas na curiosidade das crianças; descobrindo espanto no rosto dos mendigos de mão estendida. Apetecia-lhe gritar.
Se o nome Dr. Bartolomeu Todouvidos ― Psicoterapeuta não estivesse inscrito nesta placa, julgaria tratar-se dos escritórios do representante de alguma firma de aparelhos auditivos!... Assim se ouviu a pensar Mercedes, entretida a observar as várias orelhas gravadas na chapa de latão brilhante junto da porta da casa do psicoterapeuta.
― Quem é? ― A voz forte do psicoterapeuta chegava ao passeio através do intercomunicador.
― Mercedes, amiga do Rafael ― respondeu a rapariga, procurando controlar a sua voz, receosa de que ela soasse estranha.
Ao fechar a porta do elevador estreito ― que aliás sentiu como uma gaiola ― Mercedes foi acolhida no patamar pela voz calorosa do psicoterapeuta.
― Bartolomeu Todouvidos, muito prazer. Faça favor de entrar. É a sala em frente. ― E estendeu-lhe a mão.
O consultório era relativamente pequeno: duas cadeiras confortáveis de forro preto colocadas frente a frente, uma secretária larga encostada a uma das paredes, pejada de livros, papéis, agendas, e objectos vários em que se adivinhavam afectos guardados. Na parede fronteiriça um divã, forrado também ele de tecido preto, junto de uma estante carregada de livros que contornava parte da sala.
― Faça favor de se sentar ― disse-lhe o psicoterapeuta com um sorriso amistoso.
Mercedes sentou-se, ao mesmo tempo que observava a figura na sua frente: pelas barbas grisalhas, pela postura do corpo... talvez fosse um homem na casa dos sessenta anos...
― Ora então qual é o seu problema? ― O tom sereno da pergunta e o sorriso acolhedor convidavam à confidência.
― Eu... Não nota nada de estranho em mim? ― disse a rapariga, sem saber muito bem por onde começar.
― Estranho?! Bom... refere-se ao brinco que tem na orelha?
― Brinco?! Não, isso é a única coisa que eu conservo da minha vida de ser humano... Não vê que tenho o corpo coberto de penas azuis e um bico amarelo?
― Não, a única coisa que me chama a atenção em si é a pérola do seu brinco.
― Mas eu estou muito angustiada. Acordei esta manhã transformada em pássaro. Não vê que mal consigo falar?
― Mas por que razão pensa que se transformou num pássaro? Passou-se alguma coisa que a tenha levado a essa ideia?
― Ontem fiz anos...
― Ah! Então muitos parabéns! ― interrompeu ele. ― Mas continue, continue.
― Como estava a dizer, fiz vinte anos no domingo. Convidei os meus amigos para jantar num restaurante nas docas... Foi muito bom! Estava tão contente e agora... Hoje de manhã, ao acordar, apareci transformada em pássaro de penas azuis. Seria por causa de ter posto um vestido azul na festa dos meus anos?
― Vejo que gostou de fazer anos... ― observou o Dr. Todouvidos.
― Sim, entrei na década dos cisnes... ― Mercedes sorriu.
― Dos cisnes?!
― Dos cisnes, sim. Sabe, eu gosto imenso do algarismo dois. Parece um cisne... Eu, quando estou feliz, imagino-me muitas vezes a deslizar num lago... como um cisne branco, silencioso... Quando falo nisso ao meu namorado, ele goza comigo, diz que se calhar é o lago da minha fantasia. Ah, e era tão bom, quando eu era pequena... a minha mãe fazia-me patos com a espuma do sabonete, enquanto me dava banho. Patos que boiavam... ― Mercedes calou-se por instantes, absorta naquele seu mundo do passado.
― Lembra-se que idade tinha nessa altura?
― Como? ― exclamou a rapariga, parecendo ter despertado naquele momento de um sonho. ― Não sei bem... E também gosto do algarismo zero.
― Do algarismo zero? Porquê?
― É tudo e não é nada. É como as bolas de sabão que eu e os meus irmãos soprávamos em pequenos: subiam no ar... transparentes... azuis... e depois rebentavam!
― Gosta muito de azul, não gosta? ― perguntou o psicoterapeuta.
― Gosto. Mas nem sei explicar muito bem por que razão. É tão bonita a cor azul! Tive um namorado com olhos azuis, um italiano, chamava-se Salvatore... quando eu tinha quinze anos. Sabe, salvou-me das angústias da adolescência... ― Mercedes riu‑se. ― O meu avô Duarte até costumava chamar-me Cêdes...
― Cêdes?!
― Sim, ele dizia que eu era muito sequiosa da vida, que tinha muitas sedes. Foi pena ele já ter morrido. Gostava tanto do meu avô! ― As lágrimas assomaram-lhe aos olhos. ― Lembro-me muito bem das suas palavras uns dias antes de morrer. Pegou-me nas mãos e disse-me... com um olhar... ele tinha um olhar tão doce aquele avô! Disse-me: “Não queiras sorver a vida toda de uma vez, minha querida, ela cai gota a gota, em cada dia que passa...” Claro que eu me esqueço disso muitas vezes... mas os meus amigos também são assim. Oh! Estou a contar-lhe estas coisas todas e quase me esqueci do problema que me trouxe cá. Como é que eu vou aparecer na faculdade transformada em pássaro, coberta de penas da cabeça aos pés? Aos pés?! Patas! O que eu tenho são patas!
― É normalíssimo que se sinta pássaro... Pelo que já me contou, julgo perceber que o seu pensamento tem asas que a levam para mundos diversos, não é assim? Além disso, muitas vezes, de tanto pensarmos e desejarmos as coisas, acabamos por nos colarmos a elas. Isso é natural no ser humano. Falou há pouco em faculdade... Então o que é que está a estudar?
― História. Gosto muito de tentar compreender o passado. Há tanta coisa que não se conhece... Assim, pode ser que eu entenda melhor a razão de uma infinidade de coisas que acontecem no mundo, não acha? Porque o mundo já traz tantos anos com ele... Pelo menos lá vamos conseguindo encontrar algumas explicações para o nosso presente: factos daqui, interpretações dali... Todas estas guerras que se arrastam ao longo do tempo, os interesses escondidos por trás de cada uma delas, a evolução de cada país...
― A modernidade dentro da repetição... Sim, tem razão. Pensar, compreender... tudo isso faz parte da vida. E... já tem alguma ideia do que vai fazer com o seu curso?
― Ainda não sei bem, estou um pouco indecisa. Depende também das oportunidades que me apareçam. Não haverá talvez muitas escolhas, provavelmente irei parar ao ensino. Mas tenho ainda muito tempo na minha frente... Bom... se deixar de ser pássaro e voltar a ser uma pessoa...
― Mas não se passa nada de extraordinário consigo. Pelo que eu vejo e também pelo que me contou, é uma pessoa perfeitamente normal...
― Mas há bocado, quando lhe perguntei se não notava nada de estranho em mim, falou-me no brinco que eu tenho na orelha... ― interrompeu a rapariga, um pouco inquieta.
― O brinco... sim, chamou-me a atenção... uma pérola branca suspensa no entrelaçado de prata fina do pingente... Mas insisto, na minha opinião a Mercedes não tem problema nenhum. Aconselho-a a fazer a sua vida, sem constrangimentos, a conviver com os seus amigos... Claro que, se precisar de voltar a conversar comigo, estarei pronto a recebê-la.
― Obrigada, Dr. Todouvidos. ― Mercedes sorriu. ― Parece que me sinto mais aliviada, fez-me bem falar consigo.
O psicoterapeuta acompanhou-a então à porta e ela despediu-se.
― Adeus. Não vou esperar pelo elevador, prefiro descer as escadas.
Ao chegar à rua, Mercedes deparou-se com uma enorme mancha azul que, à primeira vista, a levou a pensar estar a caminhar no céu. Mas... não pode ser, o céu costuma estar lá em cima... e eu estou no chão! Ah, deve ser um lago... Terei finalmente encontrado o lago da serenidade? Fechou os olhos, deixando que o seu corpo se encharcasse nas águas límpidas dessa serenidade imaginada. Quando ao fim de alguns minutos os abriu, percebeu que se tinha enganado.
Nos passeios cruzavam-se centenas de pássaros com penas azuis e bicos amarelos, todos iguais, que a olhavam com animosidade e lhe barravam o caminho. Entrou numa pastelaria para beber um sumo de laranja e de imediato foi insultada pelos empregados: “Não servimos clientes com brincos! Faça favor de sair!”. Pediu para falar com o gerente, mas ele recusou-se. Logo ela compreendeu que de nada valeria a sua reclamação, assim que o viu de relance na cozinha, quando um dos empregados abriu a porta para passar com um tabuleiro de bolos que prontamente arrumou no balcão de vidro: era um pássaro como os outros, encorpado na sua arrogância de poder.
Mercedes saiu da pastelaria perseguida pelos sussurros e pelos olhares pouco amistosos dos clientes que se empanturravam nas mesas da frivolidade. Com o intuito de perceber o que se passava, experimentou meter conversa com um transeunte que lhe pareceu estar disposto a ouvi-la:
― Faz favor... por acaso sabe...
― Saia-me da frente. É preciso ter descaramento para se aproximar de mim. Já viu aqui alguém com brincos? ― A hostilidade chegava uma vez mais sob a forma de palavras.
A rapariga ficou imóvel no passeio, estupefacta, procurando recompor-se da resposta recebida. De novo a agressão a magoava no corpo e na alma.
― Olha agora esta! Pespega-se aqui e a gente que se desvie! Desgruda, pá! Vai para casa tirar o brinco! Fica-te mesmo a matar! ― As palavras insolentes e o riso alvar acompanhando o empurrão dos dois matulões que se julgavam donos do passeio, da rua, da cidade, do mundo.
Mercedes sentiu que uma lágrima lhe escorria dos olhos. Decidiu então fugir daquele mar azul de penas hostis e regressar a casa, fazendo o mesmo percurso que a trouxera ao consultório do psicoterapeuta. Procurou discretamente a parte interna do passeio, quase roçando as paredes dos prédios, e prosseguiu silenciosamente o seu caminho, a atenção redobrada, a postos para qualquer imprevisto a tempo evitável.
A certa altura, Mercedes reparou que à sua frente, arrastado por um pássaro corpulento e apressado, caminhava um passarinho de pequena estatura, muito gracioso e vivo, as asas numa agitação permanente, para cima e para baixo, saltitando sobre as pedras brancas do passeio. Notou então que, no meio daquele jogo interminável, ele se voltava amiúde para trás e que a observava atentamente, o que provocava ainda mais a impaciência do pássaro corpulento: ― Mexe-te, que é tarde. E deixa de olhar para esse brinco. Ainda apanhas!
Mercedes abrandou um pouco o passo, com a intenção de desviar a atenção do passarito e assim evitar uma tareia valente que se adivinhava no horizonte. Mas não conseguiu o que pretendia: ele afrouxou igualmente o passo! Achou-lhe graça e sorriu, curiosa por saber até onde o levaria aquela obstinação.
Foi então ao virar de uma esquina que Mercedes viu o passarito largar a asa do pássaro corpulento com um gesto brusco e enérgico. Depois, esperou que ela se aproximasse dele um pouco mais, levantou uma das asas e mostrou-lhe o berlinde colorido que aí tinha escondido. Seguidamente, voltou a deixar-se arrastar pela impaciência do outro.

M

segunda-feira, julho 24, 2006

Hoje recebo-vos com flores campestres














Foto de M

Três livros que em tempos li com enorme prazer













«‘Edith!’ said Margaret gently. ‘Edith!’ But as Margaret half suspected, Edith had fallen asleep. She lay curled up on the sofa in the back drawing-room in Harley Street, looking very lovely in her white muslin and blue ribbons…»

Chapter I, North and South, Elizabeth Gaskell, Penguin Books.

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« For a right understanding of the life of my dear friend, Charlotte Brontë, it appears to me more necessary in her case than in most others, that the reader should be acquainted with the peculiar forms of population and society amidst which her earlier years were passed, and from which both her own and her sisters’ first impressions of human life must have been received. I shall endeavour, therefore, before proceeding further with my work, to present some idea of the character of the people of Haworth, and the surrounding districts…»

Chapter II, The Life of Charlotte Brontë, Elizabeth Gaskell, Penguin Books.


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E noutro estilo e noutra época, assim começa o livro The L-Shaped Room, o primeiro de uma trilogia (The Backward Shadow, Two is Lonely) de Lynne Reid Banks, Penguin Books:


« There wasn’t much to be said for the place, really, but it had a roof over it and a door which locked from the inside, which was all I cared about just then. I didn’t even bother to take in the details − they were pretty sordid, but I didn’t notice them so they didn’t depress me; perhaps because I was already at rock-bottom. I just threw my suitcase on to the bed, took my few belongings out of it and shut them all into one drawer of the three-legged chest of drawers. Then there didn’t seem to be anything else I ought to do so I sat in the armchair and stared out of the window…»


Foto de M

sexta-feira, julho 21, 2006

"Chanteuse", de Kandinsky. Adoro-o!



















Foto de M (de um postal)

"Por Amor da Índia", de Catherine Clément















− Minha querida, toma demasiado tempo ao senhor Gandhi!
− Não faz mal − replicou o velho. − Conversar com as mulheres é uma das alegrias da minha vida, excelência. A propósito… Poderia pedir-lhe um favor? Uma das melhores militantes do Congresso, Sarojini Naïdu, uma valorosa mulher, que certamente já conhece, é uma velha amiga de Jinnah. Gostaria que tivesse uma conversa com ela.
− É muçulmana? − perguntou prontamente lord Louis.
− Hindu, sir, justamente. A senhora Naïdu é uma grande poetisa… O rouxinol da Índia! − disse Gandhi espetando um dedo. − Receba-a, sir. Melhor do que qualquer outra pessoa ela o informará sobre Jinnah.
Avançou lentamente, fingindo uma fraqueza que o passo robusto desmentia, deixando que o ajudassem dos dois lados. Lord Louis seguiu-os.
− Vem à minha oração da noite? − perguntou ele inopinadamente, olhando Edwina.
Ela aquiesceu em silêncio.
Transpuseram o limiar do palácio. O sol bateu-lhes em cheio bruscamente e o ancião piscou levemente os olhos - Edwina e Nehru afastaram-se.

Um excerto do livro Por Amor da Índia, de Catherine Clément. Edições Asa.


Foto de M

segunda-feira, julho 17, 2006

"Diários da Bósnia", filme de Joaquim Sapinho

Foi-me difícil escolher alguns excertos da entrevista dada por Joaquim Sapinho à revista "Magazine Artes" no número de Julho / Agosto sobre o seu filme "Diários da Bósnia". Na impossibilidade de a dar a conhecer na totalidade, transcrevo em baixo os excertos que me tocaram mais neste diálogo de enorme sensibilidade entre entrevistador e entrevistado.



MA
− Diz nas imagens iniciais do filme que já havia estado na Bósnia. O que o levou a regressar?

JS − Estive na Bósnia em 96, porque fui atraído por aquilo que se estava a passar, pela guerra da independência após o colapso da Jugoslávia. A confusão das emoções quando se está diante de uma guerra não permite sequer dar um testemunho, porque se fica muito próximo de quem está a sofrer. Foi o regresso à Bósnia, em 98, que me permitiu pensar no que tinha acontecido, no porquê daquela guerra, e até do que significavam para mim as imagens da primeira viagem.
A sensação que eu tenho, depois desta experiência, é a de que provavelmente as emoções primordiais, como por exemplo a da morte, não podem ser representadas directamente.
Nas imagens da primeira viagem é como se houvesse um nervosismo, um ruído que as faz, no fundo, pertencerem ao próprio conflito, enquanto as imagens da segunda viagem tentam representar o conflito.

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MA − Às tantas, numa cena de viagem num eléctrico, diz que é como se as pessoas não o vissem. Porque sentiu isso? Há um tempo para esquecer, um tempo próprio para poder voltar a viver depois do que essas pessoas passaram e viram? Um tempo próprio para poder voltar a ver os outros?

JS − O que eu senti no eléctrico é que na Bósnia os vários lados do conflito formam uma comunidade de sofrimento inexpugnável. Todas aquelas pessoas estão ligadas pelo mais terrível dos pactos: o pacto do assassino e da vítima, o pacto da cumplicidade na violência, o pacto da submissão, o pacto do ódio. E, quando eu entrei no eléctrico, o que eu senti é que não havia vitória, não havia independência, não havia liberdade que apagassem o que se tinha feito e o que se tinha sofrido. E que todos, as tropas internacionais, os jornalistas, os artistas eram extraterrestres daquele sofrimento. Éramos invisíveis perante a pungência, a intensidade que ligava a vida daquelas pessoas que pareciam de uma outra dimensão. Porque há uma questão que não se põe e mete medo na Bósnia: como voltar à vida sem nos colocarmos numa posição em que não sejamos assassinados ou não sejamos nós a assassinar? Terrível questão.

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MA − Há um declarado cariz documental neste filme. Pergunto-lhe porque é que as pessoas não falam? Porque optou apenas pela voz do narrador?

JS − Penso que o cariz documental deste filme é problemático, porque eu não acreditava na ideia de que alguma das perguntas que eu queria fazer pudesse ser respondida através do método da entrevista, nem acreditava em forçar as pessoas a representar o papel do seu próprio sofrimento. Preferi guardar as minhas distâncias e dizer o que eu mesmo estava a pensar, enquanto via o que estava diante da câmara. Tentei encontrar a verdade do que eu sentia, uma vez que não podia fazer um filme em que pusesse as pessoas a representar. O silêncio do filme é muitas vezes o meu silêncio, mas, de facto, as pessoas também não falavam muito, depois de tudo aquilo que lhes tinha acontecido. Foi talvez o encontro de dois silêncios cortados por alguns murmúrios do que eu ia pensando nos diários e de alguma palavra que as pessoas diziam, apesar da presença de uma câmara. O que eu sentia da parte das pessoas era: “Isto já nos aconteceu, e agora como é que vamos viver com isto?”. Era isso que se sentia no silêncio. Eu, pelo meu lado, pensava: “Isto já aconteceu, será que vai voltar a acontecer?”. Mas um pensamento destes não se consegue dizer de forma expressa, e responde-se com mais silêncio…

M

Tenho saudades do frio e da chuva...














Foto de M

quinta-feira, julho 06, 2006

A pensar na Soledade (clicar aqui)














O hotel ficava à beira-mar, rodeado de flores e quase que poisado sobre a transparência do Adriático: um prazer para os nossos olhos cansados de atravessar aquele outro azul de um céu vazio. À entrada, os canteiros lembravam alguns dos nossos jardins, com flores e cores servindo de sombra aos gatos que a elas se acolhiam depois de se terem regalado com os petiscos que os hóspedes lhes deixavam num prato. Um prato de cartão com bonecos, daqueles que usamos nas festas de anos das crianças, como se também para eles houvesse festa. E havia! Pedacinhos de fiambre, queijo, salsicha, sobras do pequeno-almoço dos hóspedes embrulhadas em guardanapos juntamente com a ternura com que olhavam e pegavam nos gatinhos que por ali ronronavam.
Texto e foto de M.