sexta-feira, junho 29, 2007

Reflexões Caseiras 9

LILIANA

Liliana acabara de abrir passagem por entre as pessoas que viajavam de pé na coxia, aconchegando-se depois no meio metro de espaço que alguém mais generoso lhe tinha facultado. Encostava agora o seu cansaço ao banco mais próximo, a mão direita partilhando com mãos desconhecidas a pega suspensa do tecto, a esquerda apoiada na correia da mala a tiracolo.
Maria Clara tinha-a visto entrar e seguira-lhe o desbravar do caminho pelo meio daquele mundo compacto de gente que ocupava a carruagem. Deveria rondar os cinquenta anos, a pele clara do rosto emoldurada por um cabelo bonito e bem penteado que se adivinhava ter sido loiro; aqui e ali madeixas discretas numa luta desigual com os fios brancos que teimavam em se evidenciar. Vestia uma saia cinzenta de meia estação e uma blusa de seda cor de marfim. Apoiado sobre a mala a tiracolo, o casaco de malha fina no mesmo tom da saia, precaução sensata contra os primeiros fins de tarde frescos de Outono.
― Sente-se aqui que o meu neto dá um jeitinho. ― Leopoldina puxou ternamente a criança para junto de si, o sorriso aberto espalhando-se-lhe pelo rosto. ― É uma boa desculpa para o ter nos meus joelhos. Bem posso aproveitar agora! Os anos correm tão depressa que qualquer dia as minhas pernas já não aguentam este menino. Antoninho, é melhor arrumares o teu presente na mochila, não vá perder-se.
― Muito obrigada, aceito a sua oferta. A sua e a do seu neto... ― respondeu Liliana, acariciando os cabelos encaracolados do rapazinho. ― Só não quero que fiquem mal sentados.
A Maria Clara, que ainda há pouco tinha notado uma certa expressão entristecida em Leopoldina, não passou despercebida a alegria que de novo lhe iluminava o rosto. Ai os avós! Como o calor dos netos no nosso colo depressa nos faz esquecer o que nos magoa ou desilude!, pensou. Sentindo subitamente um desejo imperioso de revelar o que lhe ia na alma ― pois se também ela era uma avó embevecida! ―, procurou o seu público na desconhecida sentada defronte de si. Não lhe encontrou o olhar: mantinha-se na mesma posição em que a vira acomodar-se, a cabeça inclinada para a escuridão exterior dos carris e das paredes do túnel, aparentemente entregue a si própria. Que atracção a desta mulher pela janela!, comentou com os seus botões. O que é que ela ali descobre de interessante? Ah! já percebi, observa tudo através das imagens reflectidas no vidro.
― Avó, porque é que esta senhora pôs os óculos escuros? ― sussurrou Antoninho ao ouvido de Leopoldina, passando-lhe carinhosamente os braços em redor do pescoço.
― Talvez tenha algum problema nos olhos ― respondeu ela baixinho, disfarçadamente examinando, por detrás do beijo que poisou na testa do neto, a sua nova companheira de viagem. Socorrendo-se daquele biombo portátil que a acompanhava no seu dia-a-dia, assim escondia Liliana a mágoa e as lágrimas que por vezes não conseguia conter dentro de si. Quase tudo lhe lembrava o filho perdido havia dois anos, em toda a parte o descobria, em todo o lado o encontrava, em todo o lado, em todo o lado. Pois se o trazia sempre dentro de si!...
Quanta saudade daqueles olhos da cor do mar ― ai mar cruel e sôfrego que lho roubara! ―, daquela expressão ausente que tanta vez denunciara nele pensamentos longínquos, sonhos, sonhos, sonhos. Nem sempre... Liliana esboçou um sorriso. Surgia-lhe agora diante de si, vindo nem sabia de onde, o riso malicioso e brincalhão com que amiúde ele a presenteava, num entendimento quase perfeito entre mãe e filho. Ah! como era duro não poder tocar-lhe com as mãos, sentir-lhe os passos sorrateiros pela calada da noite, ouvi-lo contar as aventuras em que participava, pressentir-lhe as ilusões... as desilusões... Como se tornara difícil viver o sofrimento a meias com um marido atormentado, também ele flagelado pela dor! Procuravam ambos a memória do seu menino, cada um à sua maneira, cada um no seu refúgio. O pai desejava a osmose quase perfeita com os espaços privados do filho: aconchegara o seu local de trabalho no quarto que fora dele, passara a chamar-lhe “o meu escritório”. Pois se nunca mais poderia voltar a dizer-lhe “anda cá meu filho”, como quando ele era pequenino, e depois, e depois... E ela? Talvez tivesse encontrado algum conforto ― se nalgum momento o pudesse encontrar ― no silêncio da recordação que tanta vez a arrastava para longe do mundo. Era aí que então permanecia minutos incontáveis da sua vida, voluntariamente presa nesse universo em que simultaneamente se comprazia e se entristecia.
A voz anónima anunciando o nome da próxima estação interrompeu bruscamente os pensamentos de Liliana trazendo-a de novo à realidade da carruagem. Limpou discretamente uma lágrima que se escapara furtivamente por detrás das lentes escuras dos óculos e, ajeitando a correia da mala ao ombro, levantou-se devagar. Afagou a pele macia do rosto do menino sentado no colo da avó e disse-lhe com meiguice:
― Então adeus, foste muito simpático.
Já na rua, percorreu a pé a meia centena de metros que a separavam da paragem do autocarro que a conduziria a casa do filho mais velho. Abrandou o passo junto de uma pastelaria e ali se deteve por momentos, olhando a montra iluminada, um leve sorriso espreitando por entre os lábios. Seguidamente empurrou com cuidado a pesada porta de vidro trabalhado que se abria sobre a atmosfera adocicada e morna do interior. Escolheu uma mesa ao pé da janela e aí se sentou, saboreando o seu bolo predilecto e apreciando a ténue luz de um pôr-do-sol de Outono. Mais tarde, quando saiu da pastelaria, segurava na mão o pequeno embrulho com os bolos-miniaturas que acabara de comprar para o filho e para a nora.

Assim era esta Liliana com nome de fada que nas pequenas coisas descobria a magia que lhe alimentava a vida.

M

Gente Comum, 2000

4 comentários:

Anónimo disse...

Como poderíamos sobreviver a dor de perder alguém querido, se não tivessemos a possibilidade desses encontros no íntimo?
Gostei muito!

None disse...

Inevitável, a vida vai acontecendo e são os pequenos gestos e gostos, que a tecem.
O dicionário espera-a para uma visita e os museus lá estão de portas abertas.
Beijo

vida de vidro disse...

Juro-te que sorri porque a minha mãe queria chamar-me Liliana. Nome de fada, pois é!
A vida é (re)feita assim, nos pequenos momentos de cada dia. **

Luisa disse...

Mais um bonito conto cheio de humanidade!