domingo, julho 22, 2007

Enfeites de Rua

Atordoado pela projecção ruidosa a que fora sujeito pela língua carnuda e roxa, após violento rodopio dentro daquela caverna lúgubre, estatelou-se o escarro desamparado no chão, junto dos mini dejectos ainda quentes do caniche seguro pela trela vermelha com dispositivo automático contra tentativas de fuga. A luz do sol avivou-lhe a cor esverdeada, sobressaindo brilhante nas pedras sujas do passeio entre sacos esventrados pelo apetite voraz de cães menos bafejados pela sorte. Mas depressa a sombra de uma bota pesada se tornou real, espalhando-lhe a asfixia pelas imediações e dando-lhe a oportunidade de conhecer de perto meia dúzia de cerejas descompostas pela interrupção involuntária de uma digestão que não se adivinhara poder vir a desviar-se do seu caminho habitual.
De qualquer modo, preferia a sua situação de desmembramento àquela outra que observou na pastilha elástica cor-de-rosa que, relutantemente arrancada do seu lugar de eleição na berma do passeio, se sentiu arrastada para lugares desconhecidos.
Imaginou-a percorrendo quilómetros, esmagada pelo passo distraído e cadenciado do dono do sapato, atirada para os sulcos labirínticos de uma sola de borracha “made in EU ”, até ao momento em que sofreria no corpo espalmado e exangue uma outra violência. Seria então atacada pela impetuosidade de um qualquer pau de gelado lambuzado e abandonado que se entregaria à tarefa sádica de a dilacerar, com o pretexto de a libertar de espaços estreitos. Desmantelada a sua peganhenta forma física, tornada mais débil depois da luta obstinada e inglória com o pedaço de madeira, por mor da sua integridade, adaptar-se-ia sem remédio à sua nova aparência.
Partiria então, retalhada até ao âmago, e correria o mundo das ruas da cidade, ora cravada nas solas de couro das Hispanitas galegas, ora tentando equilibrar-se nos finíssimos saltos altos acabados de chegar da Milano. Ou, ainda com um pouco mais de sorte, se acomodaria confortavelmente algum dos seus pedaços pegajosos mais afoitos entre as aplicações em metal dourado da última colecção de sapatos Christian Dior. Para já não pensar naquele outro de índole mais preguiçosa e comodista que, ajustando a seu favor um conhecido ditado popular (“Não faças hoje o que podes deixar para amanhã”), aguardaria o momento propício para se fixar entre a macieza de uma qualquer alcatifa, tomando o lugar como definitivo. Ou pelo menos temporariamente definitivo, que de experiência ouvida tinha conhecimento das frequentes dificuldades na remoção de pastilhas elásticas espalmadas.
Pois, isso era cem por cento verdade, essa história do não‑absoluto, ou do temporário. Que o gato que acabara de o pisar naquele instante, a ele, escarro já parcialmente desagregado, correra desenfreado atrás do “anda cá, bichaninho” da velha do saco com espinhas, e não chegara ao outro lado da rua. Atropelara-o a camioneta dos congelados espanhóis e ele rodopiara no ar, caindo do céu aos trambolhões e espalhando as tripas no meio das embalagens de papelão abandonadas junto do contentor ainda vazio. E a velha desarvorara sem destino, lamentando o seu animal de empréstimo nas horas forçadamente marcadas dos seus dias desprovidos de obrigações. Ficara o saco malcheiroso onde ela o pousara e sobre ele uma miríade de moscas na faina habitual de explorar territórios conhecidos e desconhecidos.
E como o dia é também transitório e troca constantemente de lugar com a noite e com os seus hábitos, veio a camioneta da recolha do lixo e engoliu-o todo. Enquanto a uma janela próxima assomou alguém com insónias atirando raivosamente pela borda fora mil bocadinhos de papel com frases ilegíveis que poisaram suavemente sobre o passeio.
M


Histórias ao Entardecer, Setembro de 2004

9 comentários:

Zé-Viajante disse...

Histórias de encantar.

None disse...

Este texto tem muita força. É preciso coragem para abordar um assunto que ainda existe, infelizmente, no sec. XXI.

Anónimo disse...

K ké isso, meu?
Prefácio para o livro 'O Mau Cidadão Ecológico'???...
Bem escritinho...mas muito pesado esse tema.

bettips disse...

O lado negro, ou cinzento, descrito duma forma lírica! Não te reconheceria, assim forte e assertiva! Bjinho M.

Manuel Veiga disse...

tema para uma òpera (bufa): a "Revolta do lixo". O Livreto já existe...

a qualidade do texto não me surpreende. mas também não te reconheceria...

jawaa disse...

Um belo texto, cheio de força, mas triste.
Tens de ir de férias e alegrar-te um pouco com a vida... eu bem sei que é pedir demais!
Sempre tão delicada nas palavras que me deixas... obrigada.
Um abraço amigo

Anónimo disse...

Nunca tinha visto o lixo tratado por este ângulo tão violento! Cheguei a ter pena da pastilha elástica...

Anónimo disse...

Manuela, tao extraordináriamente bem descrito, que por pouco me dava volta ao estomago...o escarro!
Quanto às pastilhas elásticas também já conheci algumas com um instinto de sobrevivencia identico...um bom remédio umas pedrinhas de gelo!
O último parágrafo veio como uma brisa, levando os maus cheiros que me subiram ao nariz e permitir-me reconhecer-te neste texto (tive dificuldade tal como a Bettips e o herético).
Um beijinho.

Joana Roque Lino disse...

Achei simplesmente fantástico o que escreveu e como o escreveu. Também padeço desse "mal" de ter uma imaginação prodigiosa. :)
Um beijo