quarta-feira, maio 13, 2015

6. M.



Restara apenas o cabo do guarda-chuva. Dias antes, um vendaval desabrido arrancara-lhe das mãos a haste com as varetas e arrastara-as pelo ar enroladas no tecido preto rasgado, ao encontro das nuvens cinzentas que corriam apressadas sobre a sua cabeça. Resolvera então pendurá-lo na geringonça instalada no exterior do teatro, talvez alguém achasse graça àquele ponto de interrogação ou encontrasse nele algum simbolismo. Não é o teatro um espaço de permanente reflexão sobre a vida, expressa das formas mais diversas? 
Felizmente o sol abrira-se um pouco a meio da manhã apaziguando com a sua presença os temperamentais assomos outonais. Hoje até podia fumar o seu primeiro cigarro ao ar livre sem se preocupar com imprevistos climáticos. Não o acabou, alguém lhe falava ao ouvido, o tal sensato do costume, um sensaborão. Não estranhou o sussurro, estava habituado a conviver com várias personagens dentro de si. Mergulhou a beata na água de uma das taças abandonando-a à curiosidade de algum pardalito que ali pousasse a refrescar-se. Antes escorrega de bebedouro do que beata!, pensou. Sorriu, divertiam-no os diferentes significados que as palavras podem ter. Sentindo-se mais relaxado depois do breve intervalo, entrou no edifício. Na sala, os outros actores esperavam-no para ensaiarem em conjunto a peça de teatro que assinalava o quadragésimo aniversário da companhia. 
M
(Em novembro de 2011, acompanhei uns amigos na visita à sede do Grupo de Teatro o Bando em Vale de Barris, Palmela, onde tirei esta fotografia por achar graça ao recanto.)

5 comentários:

Luisa disse...

Como tenho a liberdade de entender um obra de arte à minha maneira, a interrogação suscitada pelo cabo do guarda-chuva seria para mim a dúvida sobre ali se poderia fumar ou não. Ou se se deveria parar de fumar imediatamente. Ou se, afinal, fumar não faz tanto mal como se diz...

Rocha de Sousa disse...

Bela fotografia e boa narrativa
Rocha de Soua

Justine disse...

Narrativa magistral de um momento mágico, interagindo com uma foto encantadora!

Licínia Quitério disse...

Quarenta anos passaram desde que vi peças desse grupo ainda menino. Deviam gostar desse guião de "As beatas e o guarda-chuva". :)))

bettips disse...

E lá vamos, levados pelo belo fim de dia e as palavras encadeadas, como um teatro, onde "as coisas não são o que parecem".