
A Toalha Vaidosa (Foto de S.)
A Coroa do Rei
No país das linhas rectas paralelas havia um rei que tinha uma coroa de prata lisa e brilhante como um lago onde não toca uma aragem. Sempre que saía, colocava a coroa na cabeça e olhava-se ao espelho para ver se estava elegante. Depois descia vagarosamente a escadaria de pedra do palácio, com o corpo muito direito para não deixar cair a coroa. O rei gostava de passear de carruagem pelo seu reino, por isso exigia que ela estivesse à sua espera, à porta do palácio, com o cocheiro e o lacaio de libré que, com uma grande vénia, lhe abria a porta. Baixava então ligeiramente a cabeça para entrar no coche, segurando a coroa com a mão enluvada, e sentava-se à janela com um sorriso de rei nos lábios.
Naquela cidade, assim como no resto do país, e porque o rei tinha proibido todas as curvas, as ruas eram paralelas e em linha recta, terminando abruptamente sob um arco aberto para um descampado. Como se pode imaginar, esta arquitectura urbanística provocava enormes confusões no trânsito. Os peões andavam constantemente a direito e, quando precisavam de mudar de direcção, faziam-no em ângulo recto, o que era uma complicação. E uma perda de tempo, sempre que queriam entrar ou sair de suas casas, das casas dos amigos, de alguma loja, ou dos autocarros. Mas o pior de tudo era quando iam cheios de pressa e se enganavam no caminho: não podiam dar rapidamente meia volta e virar para trás, como toda a gente faz em qualquer parte do mundo. Ou quando alguém mais distraído, depois de todo o esforço dispendido nos ângulos rectos, tocava à campainha de uma casa de que não conhecia o dono. Quem é?, perguntavam do andar lá de cima. É o Felismino. O senhor Doutor Aloísio está?, respondiam cá de baixo. Doutor?! Não mora aqui nenhum doutor. Deve estar enganado, esganiçava-se a voz da empregada. Ah, desculpe. Desfeita a confusão, e não sei se menos atarantado, voltava o transeunte ao trilho certo, olhando o polícia de giro pelo canto do olho. Impõe-se-me aqui esclarecer os leitores mais atentos: os polícias podiam circular à vontade apenas em serviço, por razões de agilidade de movimentos na sua função de guardiães da ordem. Fora disso, obedeciam às mesmas regras dos outros cidadãos.
Com os carros o rebuliço era ainda maior, pois os condutores, quer se enganassem quer não, tinham sempre que ir até ao fim da rua, transpor o arco, dar a volta na parte de fora, nos campos sem caminhos marcados (propositadamente pensados para isso), e regressar de novo ao interior da cidade. Não era autorizada qualquer manobra em marcha-atrás, pois para além do transtorno que poderiam causar ao trânsito, nem todos os automobilistas tinham mão firme no volante. Nem campo de visão perfeito para a retaguarda que lhes assegurasse recuar exactamente a direito por cima dos riscos traçados no chão.
Mas o rei não se importava nada com a agitação, pois achava que a cidade ficava linda com todas aquelas linhas ordenadas no pavimento. Comprazia-se a admirar a estética da sua obra e espreitava para fora da janela da carruagem, respondendo com acenos demorados ao gesto amável de algum dos seus súbditos. Mas um dia, ao pôr a cabeça de fora para apreciar melhor, e à distância, a vista de todas aquelas linhas perfeitamente paralelas, caiu-lhe a coroa. Foi então que uma criança que caminhava com um pé à frente do outro sobre uma das linhas marcadas no chão desatou a rir e disse muito alto: A coroa do rei está cheia de caminhos!
M
(Fotografia e texto publicados no Fotoescrita, em fins de Junho de 2005)
Que giro, essa dos polícias de giro... Uma imaginação, uma brincadeira que me recorda alguém, um conto de criança com alma dentro.
ResponderEliminarA fotografia? Repara-se que não há rectas "na coroa" ... e todos - ou muitos - se encontram, se quiserem mesmo.
Um beijinho M.
Uma imaginação fértil, um saber contar e manter o leitor preso até ao desfecho inesperado. Uma história para pequenos e cescidos. Imagina assim esta história ilustrada em folhas soltas, ordenadas e entregues aos meninos. No meio deles, alguém leria o texto correspondente a cada uma das folhas desenhadas. Como um filme a passar, imagem fixa e voz off.
ResponderEliminarVitória, vitória, acabou-se a história.
Vês o que fizeste? Já brinquei aos contadores de histórias.
Obrigada. Beijinho.
Bonita fotografia e texto a condizer, parecendo inspirado no conto “O Fato Novo do Imperador” de Christian Andersen, o nosso Rei Vai Nu.
ResponderEliminarVárias interpretações: as aparências iludem, quem se quer bem sempre se encontra, é proibido proibir, a verdade incomoda, e outras mais.
Obrigada pela partilha.
Um abraço
O que me ocorreu dizer tem tudo a ver com o que a Jawaa se antecipou a escrever.
ResponderEliminarUma versão do Rei vai Nu, com uma intensidade que ultrapassa a mera história infantil.
E da coroa saíram-lhe caminhos bem curvos!!
ResponderEliminarUma excelente estória com moral dentro, ou dizendo de modo mais literário, uma metáfora fortíssima sobre os caminhos da vida.
Muito bom, M.