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quarta-feira, outubro 11, 2023

4. Licínia

 

 

Tinha uma camisola cinzenta. É tudo o que sei da senhora que fazia crochet durante a viagem de comboio. Sei das mãos dela segurando o círculo de lã que ia crescendo, em volta, em volta. De vez em quando as mãos paravam de tecer e os dedos contavam pontos, contavam. E a rodela de várias cores continuava a crescer, a crescer, em volta, em volta. A camisola cinzenta era um pano de fundo da peça que volteava, volteava. Houve um momento em que as mãos pararam, a rodela parou de voltear. Foi um momento breve, mais breve do que a paragem do comboio na estação. Depois, num arranque brusco da mão, a senhora puxou o fio, puxou, desfez, desfez, voltas e voltas a desmanchar, a desmanchar, à roda, à roda, no sentido inverso do fazer, do fazer. A rodela a minguar, a minguar, o comboio a andar, a andar, a camisola cinzenta como pano de fundo, enquanto Ulisses nos braços sedosos de Circe.

Licínia

6 comentários:

  1. Anónimo12/10/23

    Estranha maneira de viajar: fazer e desfazer
    Luisa

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  2. Lindíssimo, o teu conto de desfiar

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  3. Talvez também metafórico o teu texto. Não estaremos nós tantas vezes a fazer e desfazer a nossa existência?

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  4. Fico perplexa com tal fiar e desfiar da tua imaginação!

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  5. Belo, o ritmo sincopado do teu texto...

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  6. Anónimo14/10/23

    Um texto muito interessante.

    Teresa

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