“… Henry desvia os olhos, concentrando-se na carne branca sem sangue e nas formas prateadas sem vísceras, cujo olhar não é acusador, e nos peixes de profundidade dispostos em hábeis filas sobrepostas de um cor-de-rosa inocente, como páginas de cartão do primeiro livro de um bebé. Naturalmente, o Perowne pescador tem lido a literatura mais recente: na cabeça e no pescoço da truta há muitos nociceptores polimodais iguais aos nossos. Houve tempos em que se pensava comodamente que, para nosso benefício, estávamos rodeados de autómatos comestíveis em terra e no mar. Afinal, sabe-se agora que até os peixes sentem a dor. É esta a complicação cada vez maior da condição moderna, o círculo em expansão da compaixão moral. Não somos apenas irmãos e irmãs de povos distantes, mas também de raposas e dos ratos de laboratório, e agora até dos peixes. Perowne continua a pescá-los e a comê-los e, embora não fosse capaz de meter uma lagosta viva em água a ferver, não tem qualquer problema em pedir uma num restaurante. Como sempre, o segredo, a chave do sucesso e do domínio humano é ser selectivo nas compaixões. Por muitas coisas que se digam, é o que está à mão, o visível, que exerce a força que tudo domina. E aquilo que não se vê… É por isso que na amável Marylebone o mundo parece tão profundamente em paz.”
Noite das coisas, terror e medo Na aparente paz dispersa Sobre as linhas caladas. Efeitos de luz nas paredes caiadas, Gestos e murmúrios de conversa No mundo estranho do arvoredo.
Poesia, Sophia de Mello Breyner Andresen Colecção Poesia. Edições Ática.
... em casa dos meus pais, usava-se este arrendado para bater nos tapetes. Não me recordo com que frequência, mas havia lá em casa quem os debruçasse nas varandas das traseiras a umas determinadas horas permitidas pela fiscalização camarária e lhes batesse com fúria. Imaginem, bater-lhes, depois de os pôr à janela a apanhar ar e de lhes proporcionar vistas mais desafogadas que as dos sapatos e as das mesas e cadeiras! Adivinho-lhes o espanto. Mas a causa, afinal, era boa: aliviá-los do peso leve do pó. Uma prevenção contra alergias à limpeza doméstica, também: as do tapete (talvez, quem sabe) e as dos vários moradores da casa (de certeza, sei eu). Agora, existirá ainda gente que usa este objecto, penso eu. Gente com força nos braços e nas mãos, pois que ela é precisa, se bem me lembro. Ou seria a minha força de menina que era demasiado frágil? Não sei. Este comprei-o eu novinho em folha (em renda, dir-se-á com mais propriedade) porque achei que essa memória merecia ser pendurada na parede. Para eu continuar a segurar nos ouvidos aquele som cavo que ecoava sobre a rua e rever as nuvens cinzentas que se soltavam dos tapetes e voavam em direcções para mim desconhecidas, a desfazerem-se pelo caminho. M