Foi-me difícil escolher alguns excertos da entrevista dada por Joaquim Sapinho à revista "Magazine Artes" no número de Julho / Agosto sobre o seu filme "Diários da Bósnia". Na impossibilidade de a dar a conhecer na totalidade, transcrevo em baixo os excertos que me tocaram mais neste diálogo de enorme sensibilidade entre entrevistador e entrevistado.
MA − Diz nas imagens iniciais do filme que já havia estado na Bósnia. O que o levou a regressar?
A sensação que eu tenho, depois desta experiência, é a de que provavelmente as emoções primordiais, como por exemplo a da morte, não podem ser representadas directamente.
Nas imagens da primeira viagem é como se houvesse um nervosismo, um ruído que as faz, no fundo, pertencerem ao próprio conflito, enquanto as imagens da segunda viagem tentam representar o conflito.
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MA − Às tantas, numa cena de viagem num eléctrico, diz que é como se as pessoas não o vissem. Porque sentiu isso? Há um tempo para esquecer, um tempo próprio para poder voltar a viver depois do que essas pessoas passaram e viram? Um tempo próprio para poder voltar a ver os outros?
JS − O que eu senti no eléctrico é que na Bósnia os vários lados do conflito formam uma comunidade de sofrimento inexpugnável. Todas aquelas pessoas estão ligadas pelo mais terrível dos pactos: o pacto do assassino e da vítima, o pacto da cumplicidade na violência, o pacto da submissão, o pacto do ódio. E, quando eu entrei no eléctrico, o que eu senti é que não havia vitória, não havia independência, não havia liberdade que apagassem o que se tinha feito e o que se tinha sofrido. E que todos, as tropas internacionais, os jornalistas, os artistas eram extraterrestres daquele sofrimento. Éramos invisíveis perante a pungência, a intensidade que ligava a vida daquelas pessoas que pareciam de uma outra dimensão. Porque há uma questão que não se põe e mete medo na Bósnia: como voltar à vida sem nos colocarmos numa posição em que não sejamos assassinados ou não sejamos nós a assassinar? Terrível questão.
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MA − Há um declarado cariz documental neste filme. Pergunto-lhe porque é que as pessoas não falam? Porque optou apenas pela voz do narrador?
JS − Penso que o cariz documental deste filme é problemático, porque eu não acreditava na ideia de que alguma das perguntas que eu queria fazer pudesse ser respondida através do método da entrevista, nem acreditava em forçar as pessoas a representar o papel do seu próprio sofrimento. Preferi guardar as minhas distâncias e dizer o que eu mesmo estava a pensar, enquanto via o que estava diante da câmara. Tentei encontrar a verdade do que eu sentia, uma vez que não podia fazer um filme em que pusesse as pessoas a representar. O silêncio do filme é muitas vezes o meu silêncio, mas, de facto, as pessoas também não falavam muito, depois de tudo aquilo que lhes tinha acontecido. Foi talvez o encontro de dois silêncios cortados por alguns murmúrios do que eu ia pensando nos diários e de alguma palavra que as pessoas diziam, apesar da presença de uma câmara. O que eu sentia da parte das pessoas era: “Isto já nos aconteceu, e agora como é que vamos viver com isto?”. Era isso que se sentia no silêncio. Eu, pelo meu lado, pensava: “Isto já aconteceu, será que vai voltar a acontecer?”. Mas um pensamento destes não se consegue dizer de forma expressa, e responde-se com mais silêncio…
M
3 comentários:
transcrever (como filmar) também é um acto de (sobre)viver. uma terrível questão!...
Adorei!
Esta entrevista merece uma leitura mais «gozada» do que aquela que sou capaz de fazer agora. Idem para o comentário.
Voltarei menos cansada para te fazer justiça!
Um beijo de boa noite!
«Gozar», aqui, é usado no sentido de uma fruição plena...
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