A manhã nascia quente e luminosa, entrando descarada pela persiana semiaberta do quarto de Mercedes e detendo-se insistente no rosto da rapariga.
Sonolenta ainda, Mercedes deu uma volta rápida na cama, refugiando a cabeça debaixo do lençol branco de algodão macio. No seu gesto habitual de segurar sonhos acomodou os braços por baixo da almofada e logo sentiu algo estranho que a fez despertar daquela dormência arrastada. Não encontrava as mãos e os braços pareciam não ter fim... Abriu os olhos, procurando compreender o que se passava consigo, para de imediato os fechar. Devo estar a sonhar! Abriu-os novamente, percorreu o corpo com um movimento rápido dos braços e das mãos e deu um grito de pavor. Mas que corpo era aquele que se colara ao seu?!
Atirou impetuosamente o lençol e o cobertor de lã fina para trás e, como se fugisse de si própria, ergueu-se de um salto. Com passos pequenos e saltitantes (por mais que se esforçasse não conseguia mover-se de outro modo), deslocou-se até à janela e puxou a fita da persiana, abrindo-a por completo. Sentindo no entanto alguma dificuldade em manuseá-la, atribuiu-lhe a causa ao entorpecimento que constantemente a invadia em manhãs de preguiça. Imediatamente se lembrou da mãe e das suas interpretações a respeito do que para si nada mais era do que a consequência dos sonos adiados da juventude. Ali estavam elas, uma vez mais, a atormentarem-lhe o espírito adormecido, eternamente as mesmas palavras que a aborreciam, sempre que se cruzava com a mãe ao levantar e ela lhe espiava os passos trôpegos, ambas a caminho da cozinha e do pequeno-almoço: “Dormes toda enrolada, filha! Pareces um novelo de lã!”. Depois vinha todo aquele rol de recomendações sobre as posturas correctas do corpo, e mais isto e mais aquilo... Ao que Mercedes se limitava a responder: “A mãe parece uma fisioterapeuta! E como é que quer que eu me aperceba que estou enrolada? Se estou a dormir!...”.
Mercedes olhava-se agora no espelho grande colocado por detrás da porta do guarda-vestidos: encontrou nele a imagem de um pássaro de asas azuis, exactamente da sua estatura. Será que estou a ficar louca? Bem sei que gosto de me mascarar... mas não estamos no Carnaval... Ansiosa, virou a cabeça para trás: não, não havia mais ninguém ali! Voltou-se novamente para o espelho, tocou a imagem nele reflectida, apalpou o seu corpo de alto a baixo, freneticamente, e sentiu uma angústia incontrolável a invadi-la. Seria este o tal “espelho mágico” das histórias que a avó Margarida lhe contava em criança antes de adormecer? Mas nesses tempos idos da sua infância não costumava assustar-se... Só não gostava da bruxa da “Branca de Neve” quando ela se olhava no espelho e lhe perguntava com aquela voz horrível de meter medo: “Quem é a mulher mais bonita do mundo?”. Estremeceu.
Observou-se de novo no espelho, de soslaio... tocou-se ao de leve, investigou depois minuciosamente cada milímetro do seu corpo. Não, não havia qualquer dúvida: no lugar da pele tinha penas macias e brilhantes; no lugar da boca carnuda e rosada um bico amarelo, rijo, seco, pontiagudo; no lugar dos dois pés descalços duas patas acinzentadas que mais pareciam o tripé da máquina fotográfica com que o pai passava horas a tirar fotografias às abelhas.
Que horror! O que é que me está a acontecer?! Mas eu sou uma pessoa, uma rapariga, eu tenho... Onde está ele? Eu tinha um brinco... Mercedes aproximou-se mais do espelho e abanou a cabeça com aquele gesto muito seu de soltar os cabelos de maneira a pôr em evidência a orelha esquerda onde habitualmente prendia os brincos. Saltaram-lhe dos olhos lágrimas de desespero que, ao correrem livres, lhe humedeceram as penas azuis. O meu brinco, ao menos o meu brinco! E o bico que fora boca abria-se-lhe e fechava-se-lhe no esforço inglório de libertar o seu pensamento. Com um misto de desespero e determinação abanou então repetida e furiosamente a cabeça, mantendo o olhar fixo no espelho. Respirou de alívio quando, por fim, viu surgir de entre o emaranhado de penas a minúscula pérola branca suspensa no entrelaçado de prata fina do pingente. Ah! Sentiu nesse instante um desejo incontrolável de exprimir com palavras a satisfação que lhe ia na alma, mas depressa se apercebeu que elas tinham ficado prisioneiras daquela horrível protuberância amarela que lhe desfeava o rosto. Tentou em vão esboçar um sorriso: ficou-lhe encravado na imobilidade córnea do bico que não se abriu. Agora é que se aplicava bem aquela expressão “sorriso amarelo”, gracejou Mercedes silenciosamente com os seus botões, tentando assim suavizar a aflição que a dominava.
Hoje não podia ir às aulas. Que diriam os colegas da faculdade se a vissem naquele estado? Será que estou com alucinações? Tenho que telefonar rapidamente ao meu amigo Rafael, a pedir-lhe o número do telefone do tal psicoterapeuta que ele conhece... O pior é se ele nota algum som esquisito na minha voz... Vou falar o menos possível... Digo-lhe apenas que não me sinto bem... nem lhe refiro que estou transformada em pássaro de penas azuis, senão julga que estou doida varrida. Se por coisas com menos importância ele já pensa que a minha mente voa demasiado e que qualquer dia fico a morar nas nuvens... que diria agora?
“Toma nota: Dr. Bartolomeu Todouvidos. Rua das Angústias, número 8, 1º andar. Falei com ele há instantes e ele confirmou que pode receber-te hoje à tarde. Tens sorte, um dos doentes dele vai faltar, porque está doente. Com outra doença, claro!...” E ria-se, o safado do Rafael, que ele não entende estes males: Mercedes rememorava a conversa com o amigo e procurava fixar a morada que ele lhe tinha dado.
Parada no patamar da porta de entrada do seu prédio, Mercedes ganhava coragem para sair de casa. Não convinha demorar-se por mais tempo: ir a pé até à paragem de autocarro, ainda por cima aos saltinhos... depois, a dificuldade em subir os degraus do autocarro... Tinha que contar com todos esses contratempos. Ah, e como havia de picar o bilhete? O melhor seria ir a pé, porque pelo que o amigo lhe tinha dito, a casa do psicoterapeuta não ficava muito longe dali. Estava decidida: caminharia ao longo da rua, junto das paredes dos prédios, o mais discretamente possível, para que ninguém reparasse nela.
Mercedes seguia agora pelo passeio de calcário branco, os olhos poisados no chão, atenta aos buracos e às frequentes pedras soltas causadoras de entorses e de outras complicações que ocupam as horas dos ortopedistas de serviço nos hospitais. Assim caminhava ela, qual ladrão acossado, sentindo-se objecto de mil olhares intrigados; imaginando comentários nos sussurros daqueles com quem se cruzava; inventando perguntas na curiosidade das crianças; descobrindo espanto no rosto dos mendigos de mão estendida. Apetecia-lhe gritar.
Se o nome Dr. Bartolomeu Todouvidos ― Psicoterapeuta não estivesse inscrito nesta placa, julgaria tratar-se dos escritórios do representante de alguma firma de aparelhos auditivos!... Assim se ouviu a pensar Mercedes, entretida a observar as várias orelhas gravadas na chapa de latão brilhante junto da porta da casa do psicoterapeuta.
― Quem é? ― A voz forte do psicoterapeuta chegava ao passeio através do intercomunicador.
― Mercedes, amiga do Rafael ― respondeu a rapariga, procurando controlar a sua voz, receosa de que ela soasse estranha.
Ao fechar a porta do elevador estreito ― que aliás sentiu como uma gaiola ― Mercedes foi acolhida no patamar pela voz calorosa do psicoterapeuta.
― Bartolomeu Todouvidos, muito prazer. Faça favor de entrar. É a sala em frente. ― E estendeu-lhe a mão.
O consultório era relativamente pequeno: duas cadeiras confortáveis de forro preto colocadas frente a frente, uma secretária larga encostada a uma das paredes, pejada de livros, papéis, agendas, e objectos vários em que se adivinhavam afectos guardados. Na parede fronteiriça um divã, forrado também ele de tecido preto, junto de uma estante carregada de livros que contornava parte da sala.
― Faça favor de se sentar ― disse-lhe o psicoterapeuta com um sorriso amistoso.
Mercedes sentou-se, ao mesmo tempo que observava a figura na sua frente: pelas barbas grisalhas, pela postura do corpo... talvez fosse um homem na casa dos sessenta anos...
― Ora então qual é o seu problema? ― O tom sereno da pergunta e o sorriso acolhedor convidavam à confidência.
― Eu... Não nota nada de estranho em mim? ― disse a rapariga, sem saber muito bem por onde começar.
― Estranho?! Bom... refere-se ao brinco que tem na orelha?
― Brinco?! Não, isso é a única coisa que eu conservo da minha vida de ser humano... Não vê que tenho o corpo coberto de penas azuis e um bico amarelo?
― Não, a única coisa que me chama a atenção em si é a pérola do seu brinco.
― Mas eu estou muito angustiada. Acordei esta manhã transformada
― Mas por que razão pensa que se transformou num pássaro? Passou-se alguma coisa que a tenha levado a essa ideia?
― Ontem fiz anos...
― Ah! Então muitos parabéns! ― interrompeu ele. ― Mas continue, continue.
― Como estava a dizer, fiz vinte anos no domingo. Convidei os meus amigos para jantar num restaurante nas docas... Foi muito bom! Estava tão contente e agora... Hoje de manhã, ao acordar, apareci transformada em pássaro de penas azuis. Seria por causa de ter posto um vestido azul na festa dos meus anos?
― Vejo que gostou de fazer anos... ― observou o Dr. Todouvidos.
― Sim, entrei na década dos cisnes... ― Mercedes sorriu.
― Dos cisnes?!
― Dos cisnes, sim. Sabe, eu gosto imenso do algarismo dois. Parece um cisne... Eu, quando estou feliz, imagino-me muitas vezes a deslizar num lago... como um cisne branco, silencioso... Quando falo nisso ao meu namorado, ele goza comigo, diz que se calhar é o lago da minha fantasia. Ah, e era tão bom, quando eu era pequena... a minha mãe fazia-me patos com a espuma do sabonete, enquanto me dava banho. Patos que boiavam... ― Mercedes calou-se por instantes, absorta naquele seu mundo do passado.
― Lembra-se que idade tinha nessa altura?
― Como? ― exclamou a rapariga, parecendo ter despertado naquele momento de um sonho. ― Não sei bem... E também gosto do algarismo zero.
― Do algarismo zero? Porquê?
― É tudo e não é nada. É como as bolas de sabão que eu e os meus irmãos soprávamos em pequenos: subiam no ar... transparentes... azuis... e depois rebentavam!
― Gosta muito de azul, não gosta? ― perguntou o psicoterapeuta.
― Gosto. Mas nem sei explicar muito bem por que razão. É tão bonita a cor azul! Tive um namorado com olhos azuis, um italiano, chamava-se Salvatore... quando eu tinha quinze anos. Sabe, salvou-me das angústias da adolescência... ― Mercedes riu‑se. ― O meu avô Duarte até costumava chamar-me Cêdes...
― Cêdes?!
― Sim, ele dizia que eu era muito sequiosa da vida, que tinha muitas sedes. Foi pena ele já ter morrido. Gostava tanto do meu avô! ― As lágrimas assomaram-lhe aos olhos. ― Lembro-me muito bem das suas palavras uns dias antes de morrer. Pegou-me nas mãos e disse-me... com um olhar... ele tinha um olhar tão doce aquele avô! Disse-me: “Não queiras sorver a vida toda de uma vez, minha querida, ela cai gota a gota, em cada dia que passa...” Claro que eu me esqueço disso muitas vezes... mas os meus amigos também são assim. Oh! Estou a contar-lhe estas coisas todas e quase me esqueci do problema que me trouxe cá. Como é que eu vou aparecer na faculdade transformada em pássaro, coberta de penas da cabeça aos pés? Aos pés?! Patas! O que eu tenho são patas!
― É normalíssimo que se sinta pássaro... Pelo que já me contou, julgo perceber que o seu pensamento tem asas que a levam para mundos diversos, não é assim? Além disso, muitas vezes, de tanto pensarmos e desejarmos as coisas, acabamos por nos colarmos a elas. Isso é natural no ser humano. Falou há pouco
― História. Gosto muito de tentar compreender o passado. Há tanta coisa que não se conhece... Assim, pode ser que eu entenda melhor a razão de uma infinidade de coisas que acontecem no mundo, não acha? Porque o mundo já traz tantos anos com ele... Pelo menos lá vamos conseguindo encontrar algumas explicações para o nosso presente: factos daqui, interpretações dali... Todas estas guerras que se arrastam ao longo do tempo, os interesses escondidos por trás de cada uma delas, a evolução de cada país...
― A modernidade dentro da repetição... Sim, tem razão. Pensar, compreender... tudo isso faz parte da vida. E... já tem alguma ideia do que vai fazer com o seu curso?
― Ainda não sei bem, estou um pouco indecisa. Depende também das oportunidades que me apareçam. Não haverá talvez muitas escolhas, provavelmente irei parar ao ensino. Mas tenho ainda muito tempo na minha frente... Bom... se deixar de ser pássaro e voltar a ser uma pessoa...
― Mas não se passa nada de extraordinário consigo. Pelo que eu vejo e também pelo que me contou, é uma pessoa perfeitamente normal...
― Mas há bocado, quando lhe perguntei se não notava nada de estranho em mim, falou-me no brinco que eu tenho na orelha... ― interrompeu a rapariga, um pouco inquieta.
― O brinco... sim, chamou-me a atenção... uma pérola branca suspensa no entrelaçado de prata fina do pingente... Mas insisto, na minha opinião a Mercedes não tem problema nenhum. Aconselho-a a fazer a sua vida, sem constrangimentos, a conviver com os seus amigos... Claro que, se precisar de voltar a conversar comigo, estarei pronto a recebê-la.
― Obrigada, Dr. Todouvidos. ― Mercedes sorriu. ― Parece que me sinto mais aliviada, fez-me bem falar consigo.
O psicoterapeuta acompanhou-a então à porta e ela despediu-se.
― Adeus. Não vou esperar pelo elevador, prefiro descer as escadas.
Ao chegar à rua, Mercedes deparou-se com uma enorme mancha azul que, à primeira vista, a levou a pensar estar a caminhar no céu. Mas... não pode ser, o céu costuma estar lá em cima... e eu estou no chão! Ah, deve ser um lago... Terei finalmente encontrado o lago da serenidade? Fechou os olhos, deixando que o seu corpo se encharcasse nas águas límpidas dessa serenidade imaginada. Quando ao fim de alguns minutos os abriu, percebeu que se tinha enganado.
Nos passeios cruzavam-se centenas de pássaros com penas azuis e bicos amarelos, todos iguais, que a olhavam com animosidade e lhe barravam o caminho. Entrou numa pastelaria para beber um sumo de laranja e de imediato foi insultada pelos empregados: “Não servimos clientes com brincos! Faça favor de sair!”. Pediu para falar com o gerente, mas ele recusou-se. Logo ela compreendeu que de nada valeria a sua reclamação, assim que o viu de relance na cozinha, quando um dos empregados abriu a porta para passar com um tabuleiro de bolos que prontamente arrumou no balcão de vidro: era um pássaro como os outros, encorpado na sua arrogância de poder.
Mercedes saiu da pastelaria perseguida pelos sussurros e pelos olhares pouco amistosos dos clientes que se empanturravam nas mesas da frivolidade. Com o intuito de perceber o que se passava, experimentou meter conversa com um transeunte que lhe pareceu estar disposto a ouvi-la:
― Faz favor... por acaso sabe...
― Saia-me da frente. É preciso ter descaramento para se aproximar de mim. Já viu aqui alguém com brincos? ― A hostilidade chegava uma vez mais sob a forma de palavras.
A rapariga ficou imóvel no passeio, estupefacta, procurando recompor-se da resposta recebida. De novo a agressão a magoava no corpo e na alma.
― Olha agora esta! Pespega-se aqui e a gente que se desvie! Desgruda, pá! Vai para casa tirar o brinco! Fica-te mesmo a matar! ― As palavras insolentes e o riso alvar acompanhando o empurrão dos dois matulões que se julgavam donos do passeio, da rua, da cidade, do mundo.
Mercedes sentiu que uma lágrima lhe escorria dos olhos. Decidiu então fugir daquele mar azul de penas hostis e regressar a casa, fazendo o mesmo percurso que a trouxera ao consultório do psicoterapeuta. Procurou discretamente a parte interna do passeio, quase roçando as paredes dos prédios, e prosseguiu silenciosamente o seu caminho, a atenção redobrada, a postos para qualquer imprevisto a tempo evitável.
A certa altura, Mercedes reparou que à sua frente, arrastado por um pássaro corpulento e apressado, caminhava um passarinho de pequena estatura, muito gracioso e vivo, as asas numa agitação permanente, para cima e para baixo, saltitando sobre as pedras brancas do passeio. Notou então que, no meio daquele jogo interminável, ele se voltava amiúde para trás e que a observava atentamente, o que provocava ainda mais a impaciência do pássaro corpulento: ― Mexe-te, que é tarde. E deixa de olhar para esse brinco. Ainda apanhas!
Mercedes abrandou um pouco o passo, com a intenção de desviar a atenção do passarito e assim evitar uma tareia valente que se adivinhava no horizonte. Mas não conseguiu o que pretendia: ele afrouxou igualmente o passo! Achou-lhe graça e sorriu, curiosa por saber até onde o levaria aquela obstinação.
Foi então ao virar de uma esquina que Mercedes viu o passarito largar a asa do pássaro corpulento com um gesto brusco e enérgico. Depois, esperou que ela se aproximasse dele um pouco mais, levantou uma das asas e mostrou-lhe o berlinde colorido que aí tinha escondido. Seguidamente, voltou a deixar-se arrastar pela impaciência do outro.
2 comentários:
Os meus olhos agradecem.
Sem palavras.
Lindo, adorei! :)
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