Proposta
de Mena M.
Dia
24
– Fotografando
as palavras de outros sobre
o texto
CAMINHO
DA MANHÃ
Vais
pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As
cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá
primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois
encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus
ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a
pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz
levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que
estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas
estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma
grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue
entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta
parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois
ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro
branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a
cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso
no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua
direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira
banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e
escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como
as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é
profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás
peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os
polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a
luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá
correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma
escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar.
E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e
leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do
filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de
orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante
compra figos pretos: mas os figos não são pretos mas azuis e dentro
são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois
vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos,
hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do
mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao
longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e
comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão
da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma
igreja alta e quadrada.
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.
SOPHIA
DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in LIVRO SEXTO (Moraes Ed, 1962) e OBRA
POÉTICA (Caminho, 2010; Assírio & Alvim, 2015)
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