O meu pai
O meu pai era um homem ímpar. Não por ser meu pai mas porque revelava características muito nobres, com as quais me identifico.
Gostava do convívio, da galhofa, de anedotas, de música clássica e de intervenção. E de um bom vinho. Mas, acima de tudo, que lhe fizéssemos tudo para que se mexesse pouco, fisicamente falando. Estava sempre cansado. Gostava da sua sorna vespertina, mesmo à mesa “passava pelas brasas”, como gostava de dizer. Astuto, atento, bom ouvinte, bom conselheiro, muito silencioso, revelava um humor britânico, acutilante, fruto talvez da vivência em Reinos de Sua Majestade. Era mordaz, e eu gosto disso. Só intervinha quando tinha de o fazer.
Cerebral e intelectualmente falando, lia muito. Toda a vida leu, era um homem muito culto. Estudou, preparou teses e relatórios, multiplicou-se em funções mil, era convidado para isto e para aquilo, trabalhava afincadamente para sustentar a família e dar-lhes o melhor que podia. Foi assim ensinado, foi assim que fez. Era um pai ausente, por isso.
Nunca me bateu, não batia, não era preciso. Bastava-lhe fixar aqueles olhos azuis mar, fulminantes, quando me baldava às aulas de alemão e era apanhada em flagrante delito a jogar flippers, fumar cigarros com o então namorado e com a troupe da praia que ele abominava. “Não fazem nada”, dizia.
Saía de manhã, cedinho, de pasta na mão e já de cigarro na boca. Um beijo de raspão e um “até logo”. Assim mesmo eu amava-o.
O escritório dele era um lugar de peregrinação. Raramente lá entrávamos, era quase sagrado. Um cheiro único, uma névoa mística de fumo embrulhando as pilhas de revistas científicas. E ele, curvado sobre a secretária, lia ou escrevia. Anda hoje, passados 6 anos, o seu escritório permanece desarrumado, um caos literário, isqueiros, dicionários, canetas, gavetas de remédios, listas telefónicas, aparelhagens, muitos discos de vinil. Um carreiro de chão livre permite a passagem de uma pessoa magra. Ninguém teve ainda coragem para o arejar. E o estore permanece fechado.
Desde sempre foi anti-Salazar. Aliás, era PCP. Praticante, activo. O seu nome constava da lista das personas non gratas, no antigamente. Lembro-me da PIDE entrar porta adentro, era eu menina e moça. Mas nunca foi preso. Curiosamente, quando Salazar caíu da cadeira, no Forte de Stº. António em S. João do Estoril, foi ele um dos especialistas chamados para a avaliação neurológica do ditador. Desígnios.
Morreu no dia em que nasceu, 83 anos depois. À mesa de um restaurante, ao almoço, rodeado por 23 pessoas, todas família, chegada, próxima, amada. Estava ao meu lado direito. Minutos antes tínhamos cantado os parabéns e brindado com um bom tinto do Douro. Estava feliz. Acho que morreu de emoção. O restaurante fechou, o INEM chegou, a notícia foi declarada, a conta nunca foi paga. Não nos deixaram. Nunca mais lá passei nem quero passar.
Margarida
8 comentários:
Partilho, guardadas as enormes diferenças e situações, a lembrança e a homenagem a um homem com quem tive fugazes contactos mas muito enriquecedores (e importantes para a minha sobre-vivencia).
Olá, Sérgio Ribeiro. Fico feliz. Prazer.
Uma declaração de amor e perda. Mas ainda de perenidade dos sentimentos nobres que relevas. Ter um modelo de pai como ele deve ser muito reconfortante, um depósito que dura um futuro.
Abç
Belíssima homenagem a um Pai ausente mas sempre presente
Luisa
Uma sorte teres tido um pai que não te desiludiu. Comovente o teu texto.
Muito interessante o que contas, pode ter sido "ausente" de alguma coisa que gostarias, mas deixou a sua "presença" em ti
É um privilégio ter tido um pai íntegro e digno de admiração e respeito. Eu sei o que isso é, Margarida
Comovente texto. Um Pai como o teu é um alento para toda a vida. Também sei o que isso é.
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