quarta-feira, novembro 09, 2011

8. M.



Voltei a ouvi-los pelas ruas do bairro naquele seu chamamento que me confrange por me parecer um grito de desespero no desencanto dos dias.
Espreitei-os de longe. Eram dois. Um deles, sentado na bicicleta, alternava o movimento mágico da roda de esmeril a lançar chispas no ar com o gesto de avaliar com a ponta dos dedos o gume da lâmina que afiava. Ao de leve, repetidas vezes, como se a acariciasse.
A dada altura parou, suponho que satisfeito com o resultado conseguido. Retirou então outras facas de dentro da caixa de ferramentas colocada atrás do assento da bicicleta e acautelou-as num saco de plástico juntamente com a que tinha acabado de amolar. Atravessou vagarosamente a rua e tocou à campainha da porta de um dos prédios, de onde regressou passados alguns minutos com um molhinho de notas na mão. Percebi que as contava e que, com um gesto aberto, entregava uma parte ao companheiro.
Depois, enquanto se preparavam para ir embora, sopraram de novo as gaitas usadas como voz de distâncias e, correndo com o olhar as janelas debruçadas sobre o passeio, afastaram-se sem pressa.

M

10 comentários:

bettips disse...

Fez-me cogitar em lembranças, esta tua descrição actual, pausada e solene, do que ouvia na infância. Ao mesmo tempo, pergunto-me "se agora é preciso serem sócios" - e nem sei que pensar.
Bonito o recordar: no meu tempo, ficava a olhar aquela magia de faíscas; e como arranjavam também outras coisa, pingos de solda nos tachos e canecas de alumínio, varetas de guarda-chuvas, ao ouvi-los, diziam os mais velhos que "ia chover" ...

(E que tempo passou na diferença de hábitos)

Luisa disse...

No meu bairro continuo a ouvi-los mas vejo poucos fregueses.

M. disse...

Bettips:
Lá por minha casa havia vários pratos com "gatos" a segurar os cacos e também as panelas continuavam as suas funções de cozinheiras com pingos de solda (até lhe davam certa graça...) Tudo durava uma vida, tudo era poupado.
É como dizes: que diferença de hábitos tomou o tempo!

Justine disse...

E qual seria o papel da segunda figura? É um pouco misterioso...

Anónimo disse...

Ainda os vejo e ouço com frequência. Uma das vantagens de morar em meios pequenos.
Dizia-se que vinha a chuva, quando eles apareciam.
Gostei da foto e do texto.
Agrades

~pi disse...

Belo texto a convocar o tempo e os prazos.
E porém, o mistério o habita, ainda circular...







~

Licínia Quitério disse...

É tão bonito o assobio destas flautas. Trazem à cidade o som dos augúrios de chuva.

Benó disse...

Um belo e oportuno instantâneo. Pouco aparecem. Vamos ao shopping amolar as facas e as tesouras e quando aparecem trazem com eles a chuva.
Gostaria de os voltar a ouvir e a vê-los trabalhar chispando linguas de fogo da roda de esmeril. Talvez nem já saibam colocar gatos nos alguidares de barro ou pingos nos tachos de aluminio. Talvez.

Anónimo disse...

Ainda se ouvem de vez em quando, com o seu som tão característico, mas não sei se ainda têm clientes. Levam tão caro por amolar uma tesoura ou uma faca que mais vale comprar novas.

Foi uma ideia muito original recordar aqui esta profissão.

Teresa Silva

Zambujal disse...

Bela crónica de um tempo vivido. Ido.
O amolador de facas e tesouras, e o seu som de gaita fanhosa pelas ruas de Lisboa.
Gostava de os ouvir outra vez...