“… Henry desvia os olhos, concentrando-se na carne branca sem sangue e nas formas prateadas sem vísceras, cujo olhar não é acusador, e nos peixes de profundidade dispostos em hábeis filas sobrepostas de um cor-de-rosa inocente, como páginas de cartão do primeiro livro de um bebé. Naturalmente, o Perowne pescador tem lido a literatura mais recente: na cabeça e no pescoço da truta há muitos nociceptores polimodais iguais aos nossos. Houve tempos em que se pensava comodamente que, para nosso benefício, estávamos rodeados de autómatos comestíveis em terra e no mar. Afinal, sabe-se agora que até os peixes sentem a dor. É esta a complicação cada vez maior da condição moderna, o círculo em expansão da compaixão moral. Não somos apenas irmãos e irmãs de povos distantes, mas também de raposas e dos ratos de laboratório, e agora até dos peixes. Perowne continua a pescá-los e a comê-los e, embora não fosse capaz de meter uma lagosta viva em água a ferver, não tem qualquer problema em pedir uma num restaurante. Como sempre, o segredo, a chave do sucesso e do domínio humano é ser selectivo nas compaixões. Por muitas coisas que se digam, é o que está à mão, o visível, que exerce a força que tudo domina. E aquilo que não se vê… É por isso que na amável Marylebone o mundo parece tão profundamente em paz.”
Sábado, Ian McEwan
6 comentários:
Esta cena da lagosta é muito gira! Pois é, já meti algumas em água a ferver e só me lembrei do que ia ser bom quando me sentasse à mesa para as comer.
Saber que os peixes também sentem a dor, faz-nos pensar duas vezes antes de voltar a meter um bichino destes na panela... :(
... A humanização dos peixes, não é?
Mas, neste livro, mais do que todos os perigos civilizacionais latentes, o que mais me custou suportar foi aquele permanente conflito familiar entre gerações... e que a qualquer momento se reacendia criando o maior incómodo entre todos e ameaçando estragar qualquer reunião familiar.
... Ou antes a humanização do bicho homem?
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Tem piada, não senti nada assim. Acho que isso é uma característica quase generalizda entre as gerações e que na maior parte das vezes não chega a "matar" essa relação. Faz parte da sua natureza e acaba por se resolver nela, e com ela, de um modo pacífico. É apenas temporária, desaparece na percepção e no entendimento, feito por cada um dos intervenientes, da situação. Partindo do princípio de que os mais velhos têm a memória activa para o seu próprio passado e abdicam do que para eles não será importante. E que tomarão apenas como um instante vivido na caminhada para o estado de adulto. Na minha opinião, salvo raras excepções, os mais velhos são os mais responsáveis pelo conflito entre gerações. Porque não se põem no lugar dos mais novos. Têm a memória curta.
Mas sabes que o ambiente familiar que eu tive era assim e desgostava-me e cansava-me imenso!
Compreendo. O desentendimento cansa.
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