O
desafio da imagem, neste caso como noutros, coloca-nos diante do que
somos; e muito do que julgamos ver é menos do que sabemos. Sabemos
sempre mais do que aquilo que vemos através do olhar. E contudo a
dimensão plurisignificante das coisas que nos cercam, podendo
accionar memórias e saberes para além delas, tem em si mesma
aspectos inacessíveis ou estranhos.
O
que vejo aqui, tudo o que já entrou para dentro do meu olhar, pode
reduzir-se a um indeterminado conjunto de pessoas que não sei quem
são nem o que fazem. Seguram, em jeito de espera, talvez sacos de
compras, recolhas. É gente de uma certa margem, depende talvez de
entregas contra o alarme, e julgo que algumas das figuras a quem o
enquadramento decepou as cabeças olham contudo para restos amolgados
de sacos de plástico ou algo que perdeu
utilidade, sentido, função: são formas abandonadas e que para mim
quase não têm nome, enchem de fragmentos brancos a mediana do
campo, estão quase perto de quem olha e sobre o empedrado
aparentemente granítico da rua. Não sei onde estou, não há
definição suficiente, nem nas pedras, nem nos despojos brancos, nem
na cadeia de pessoas cuja pausa ou acção se indetermina: é um
fragmento do quotidiano que o meu olhar me permite apontar aqui e
além, mas não através de nomes do ser e do fazer. O que sei é
mais do que vejo. E contudo estou manietado aquém do que vejo. É
nestas condições que o homem parece confrontar-se com uma penosa
condição de cegueira,
dir-se-á que mal consegue congregar os sentidos objectivos, comuns a
toda a cena, das imagens
exteriores a si. A mim.
Rocha
de Sousa
4 comentários:
Um texto muito interessante, observador e filosófico.
Boa solução para uma fotografia enigmática, passível de várias interpretações.
Pois é.
Sabemos sempre mais do que o que vemos e, quantas vezes, o que sabemos não chega para sabermos o que vemos.
Acho muito interessante, no interessante texto, o desprezo ou a desatenção relativamente aos sapatos sem pés que os calcem. Ali, em exposição quase de desafio: calcem-nos!
E que sabemos nós do que os olhos dos outros vêem e traduzem em palavras?
Também gostei muito, de andar à volta do olhar, do que sabemos e do que adivinhamos. O que nos questiona. E cega, de explicação cabal.
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