quinta-feira, dezembro 11, 2014

8. Rocha/Desenhamento



Sonho pela manhã, entorpecido numa cama de campanha, após a mais longa espera desta guerra. Estou só a pensar não escrevo, ainda não sei como, o cerco da lama atrai apenas passos de lama, quilos de lama agarrados às botas. E a marcha da tempestade perde-se atrás da floresta a sul. Nuvens enfim brancas correm perto dos nossos tectos de pano, vão sopradas assim, meio desfeitas, deixando atrás de si um céu azul. Meti os pés nas botas e fui ver. O verde da floresta brilhava, carregado de água; e em volta, vindos de longe em curva perfeita até aos nossos pés, mais de uma dezena de arco-íris pareciam riscados por Deus, com enormes compassos, do horizonte até aqui. A Terra mudara de nome, entrara para o domínio do maravilhoso. Mas em breve, com os afastamentos das nuvens, os arcos coloridos abriram interrupções, alguns ficaram presos ao capim, arcadas quebradas a cerca de vinte ou trinta metros acima das cabeças de meia dúzia de soldados enrolados em mantas e pés desaparecidos na lama até ao tornozelo. 
Rocha de Sousa, Memórias de Angola /61

3 comentários:

jawaa disse...


Para além da dor e da revolta, da crueza e insensatez de uma guerra sem razão, o seu ANGOLA 61 prendeu-me por estes espaços de "esquecimento" e consequente abertura para a beleza de uma terra sem par. Obrigada de novo por esse encontro.
Ainda morro de saudades do destempero das cores e dos lugares.

bettips disse...

São memórias, tantas, inenarráveis, doridas. O pântano.

Licínia Quitério disse...

Os pesadelos de uma geração que foi mandada servir o inferno. Recorrentes, por vezes até ao fim dos dias.