Pas...
Passando
por terras abandonadas, num pasmo de domingo e no azedume dos seus
próprios passos, o homem esquecido procurava vencer a vertente da
paisagem, montanha após montanha, carregando sobre as costas a pedra
que era sua entretanto, coisa informe atada por uma rede de cordas
que ele agarrava com as duas mãos abaixo enlaçadas abaixo do peito
encovado. E assim chegou ao cimo do monte mais alto daquele dia,
rugindo de dor e raiva, a deslaçar as mãos num gesto largo, ao
alto, passo em frente, e a pedra tombando atrás, ruído abafado pela
terra e pela teia das cordas. O homem ficou suspenso de um cansaço
sem nome, tomou nas mãos a folha onde apontava todos os
carregamentos de todos os dias. Balbuciou: um milhão e quatro. Um
ruído nas suas costas alertou-o de súbito, voltou-se para ver a
pedra rolando devagar, atroadora, com as cordas rodando em pontas
soltas. Afastava-se e perdia-se, a pedra, numa nuvem de pó. O homem
murmura: um milhão e três.
Rocha
de Sousa
7 comentários:
A pedra é nossa, temos de saber conviver com ela e não tê-la por inimiga.
Torna a tarefa mais fácil.
O "mito de Sífiso" por toda a eternidade, aqui descrito na realidade de hoje: são tantos os passos e esforços inúteis que damos ainda!
PASsatempo invulgar...
Este mito apavora-me
O nosso trabalho de todos os dias, até ao fim dos tempos...
Talvez o que nos vale é que, apesar de tudo, a pedra não cairá sempre do mesmo modo.
Um mito que deverá ter dado que pensar a Freud.
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