« (…) Agora é o coração que se constrange. Vivi aqui e ali. Uma, duas, três casas, que abrigaram o adolescente e parecem olhar o homem maduro com olhos cegos, janelas ocas...Tudo isso do sonho e da saudade é uma mentira arranjada, um embuste literário, ou o quê? Então não é verdade que aquela vidraça era minha? Aquele ferrolho o descanso da mão de minha mãe à entrada? Aquela beira e sobeira as telhas que choraram os aguaceiros que eu vi? E a nossa melancolia nasceu ou não destes céus tristes, baixos, burros? Porque nos não conhecem e festejam as janelas, as begónias dos «gabinetes» e as pedras das calçadas?
Mas passamos ao largo de tudo e tudo fica incólume. Aqui só há uma coisa que se comove – o coração que vai passando. As coisas chegam às vezes a um ponto de saturação no regresso e no amor que não há lágrimas vivas que sejam dignas de nós! Desaforo expressivo... Excesso confessional... Vou-me conter. Não digo mais nada desta jornada matinal das ruas de Angra e dos seus portões ultrapassados em peregrinação recôndita. Tudo isto é turismo baldado, roteiro inerte... Para quê teimar em recolher coisas talvez mal passadas pela memória, e só aí?... A maior parte das coisas do mundo interior que levamos são dessa qualidade intransferível: têm essa só realidade unilateral, mesmo quando empenham dois lados, como por exemplo o amor.»
Se bem me lembro..., Vitorino Nemésio (selecção de textos e organização de Joana Morais Varela), Contexto Editora, colecção Cortes, setembro de 2001
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