sábado, dezembro 02, 2006

Um trabalho a meias




A fotografia da janela, com o título "Intimidades", e este meu texto foram publicados no Fotoescrita há alguns meses atrás. Hoje acrescentamos-lhe o saco, que também faz parte dessa pequena história, para que possa ser apreciado.

Uma Leve Cortina Branca

Deve tê-la soltado do gancho que a prendia à janela para poder olhar para fora com mais facilidade. Imagino eu. Mas não que visse alguma coisa, suponho, que nem tempo teria para largar olhares pela rua estreita. Talvez se iludisse com a ideia de que desse modo se libertaria de si mesma de vez em quando. Para aliviar dos trabalhos de costura, ou de outros cuidados, quem sabe.
Uma sala pequena de soalho antigo, paredes brancas com histórias guardadas por detrás da tinta branca, as janelas arrastando os anos junto do chão. Uma mesa de madeira escura; um armário envidraçado com bordados expostos; uma máquina de costura eléctrica e uma cadeira; uma tábua de passar a ferro com um ferro em descanso ainda morno pousado em cima dela; linhas coloridas e tecidos com padrões diversos cortados em pedaços.
Na rua o som leve de passos solitários sobre as pedras escorregadias. Aqui e ali uma ou outra voz cortando o calor da tarde.
Vi o anúncio ao deambular pelas vielas da cidade: Atelier de Bordados. Estava no átrio da casa, as portas de entrada abertas de par em par. Apeteceu-me seguir a seta e espreitar. Subi a escada larga com degraus de pedra gasta pelo caminhar do tempo. Em cima, no primeiro andar, encontrei-a a coser à máquina, completamente só. Recebeu-me com um sorriso aberto.
Passei uma vista de olhos rápida pela sala. Chamou-me a atenção meia dúzia de sacos pequenos pousados em cima da mesa. Peguei-lhes.
− São tão engraçados! − disse eu. E o pensamento fugiu-me para outro lado: apetecia-me comprar um ou mais. Para mim, para oferecer… Quem poderia gostar de ter um?
Mas…
− Para que servem? − perguntei, como se reflectisse em voz alta. − Não tem em tamanho maior? Trabalha aqui sozinha?
(Eu ia fazendo perguntas tentando encontrar um motivo para comprar um saco.)
− Posso dispensar-lhe um destes. Ainda tenho tempo de fazer outro para uma encomenda a entregar esta tarde.
Continuei indecisa. Eu gostava tanto daqueles sacos...
− Cinco minutos, é só pôr-lhe as borlas, enfiar a fita de nastro e passá-lo a ferro.
E a mulher era tão amável!...
Pegou então numa caixa de plástico transparente cheia de borlas feitas com linhas de várias cores e deu-me a escolher.
− Não, prefiro que seja a senhora a fazer a escolha − disse eu.
Meteu então a mão dentro da caixa e retirou dela com afecto três ou quatro borlas diferentes que pôs em cima do saco, ao mesmo tempo que inclinava ligeiramente a cabeça para ver quais delas dariam melhor com o tecido. Depois coseu-as rapidamente e passou-o a ferro antes de mo entregar.
Agora o saco está na minha cozinha. Tem dentro as molas da roupa. E sempre que o vejo ali pendurado, encostado aos azulejos da parede, como se à espera de meter conversa com alguém, lembro-me da mulher e da leve cortina branca.

M

Fotos de S.

4 comentários:

Teresa David disse...

Tanto o saco, a cortina, e as palavras denotam aquela suavidade que se desprende de ti, tanto no que escreves como na atitude serena que emanas.
Bjs e bom fim de semana
TD

Licínia Quitério disse...

Não mais me esqueci da cortina. Cá no fundo, aguardava conhecer o saco. Ele aí está. Uma ternura aos quadradinhos :))

Anónimo disse...

Bonita história!
O saco é lindo e as borlas dão-lhe uma graça muito grande!

bettips disse...

Lembrava a cortina leve e entreaberta; tal como a senhora e o saco que não vimos e agora se revela. Bjinho