«Foi inaugurada no passado dia 2 de Julho a povoação denominada “Vila Redonda”. A cerimónia decorreu com pompa e circunstância, como é habitual nestes casos, com a presença imprescindível do Ministro das Experiências e de mais alguns membros do Governo. Um palanque coberto, devidamente alcatifado de vermelho escuro, erguido no Largo da Tradição, serviu de palco ao autor do projecto para aquela vila. O Ministro manifestou o seu regozijo por poder finalmente estar ali, agradeceu aos seus colaboradores, sem os quais a sua ideia não poderia ter chegado a bom termo, e acabou o discurso explicando como a “Vila Redonda” era um projecto economicamente importante para o país. A assistência foi parca em aplausos, apenas os colunáveis manifestaram entusiasmo, batendo fortemente as palmas que habitualmente acompanham o riso efusivo de quem costuma andar nas revistas da especialidade.
― Senhor Ministro ― Pedro Freitas, jornalista do semanário Dúvida ― Peço-lhe que me conceda alguns minutos para esclarecer umas questões que gostaria de lhe colocar.
― Faça favor de dizer, mas agradeço-lhe que seja breve.
― Ouvi atentamente o discurso do Senhor Ministro mas não compreendi o alcance deste projecto. Reparei que nesta vila as ruas foram construídas em círculos e que existe apenas uma entrada, que serve também de saída. Parece-me uma arquitectura fechada, propositadamente concebida para implementar alguma ideia...
― Sim, sim, sabe que este Governo tem uma obsessão: manter a tradição de hábitos antigos. Como sabe há inúmeras artes e costumes que tendem a desaparecer ao longo dos anos, as causas são várias, temos tudo isso
― Mas...
― Já sei a sua dúvida, mas digo-lhe com toda a clareza, este projecto foi pensado com o maior rigor, não há que recear. As pessoas precisam de ser incentivadas, daí termos solucionado este problema da falta de estímulo convocando os vários artesãos do país, assim como todos os detentores de tradições. Propusemos-lhes então uma maneira de resolverem de forma prática as suas dificuldades. Começámos por contratar consultores para estudarem as causas desta falência cultural. Sim, digo “falência”, visto não trazerem lucro ao país. Mas sabe, isto não se passa só em Portugal, depende da conjuntura actual... Os consultores tiveram que percorrer o país para fazerem correctamente o seu estudo e confrontaram-se com uma realidade deveras perturbadora. Nem imagina os casos de abandono completo de tradições que vinham de há longa data; foram substituídas por esta fúria do moderno que invade o mundo dos nossos dias. As pessoas mais velhas desistiram. Não podemos permitir este estado de coisas. Os jovens têm que ser atraídos para este mundo antigo que faz parte da sua identidade cultural, e que eles desconhecem. Foi assim que, baseando-nos nas propostas dos nossos consultores, concebemos este projecto da “Vila Redonda”: juntar os interessados num mesmo local de trabalho, com infra-estruturas adequadas, de molde a poderem partilhar experiências inovadoras. Claro que houve pessoas que não quiseram alinhar com o Governo, invocaram falta de liberdade e sério risco de perda de sanidade mental, eu acho que é uma falta de visão a longo prazo...
― Mas, Senhor Ministro...
― Já sei que comentário vai fazer. Não, não, temos que ser firmes, é imprescindível que as pessoas não se dispersem nessa recuperação do passado, daí as ruas serem em círculos, vários círculos, como teve a oportunidade de observar. Deste modo não haverá factores externos perturbadores da sua recolecção do passado; nada de desvios.
― Mas não acha que isso é precisamente ao arrepio da criatividade?
― Não vejo porquê.
― Senhor Ministro, este projecto não poderá trazer consequências nefastas ao país e às pessoas?...
― Não vejo porquê.
― Bom, constato que o Senhor Ministro não tem qualquer dúvida. Só uma última pergunta: como é que conseguiram ir com este projecto avante? O Ministério informou convenientemente os intervenientes na “Vila Redonda”? As pessoas sabem os riscos sérios que correm?
― Ninguém corre riscos, está tudo sob controlo. E não se esqueça dos benefícios fiscais envolvidos...
Aqui vos deixo, caros leitores, com esta minha experiência insólita. Mas deixo-vos também uma promessa: hei-de voltar ao contacto convosco para vos dar conta dos resultados da obsessão do nosso Governo. Deus nos guarde!»
Jornalista do Departamento de Casos Insólitos
Versus Obsessão
Era uma rapariga de 20 anos, figura esbelta, cabelo castanho dourado caindo sobre os ombros deixados a descoberto pela blusa azul clara decotada. Na brancura luminosa do rosto sobressaíam os olhos amendoados, de um castanho profundo. Vestia uma saia de algodão no mesmo tom da blusa, salpicada de florzinhas verde musgo. A saia fresca cobria-lhe as pernas esguias, tocando de mansinho os pés descalços, suavemente poisados na laje morna da esplanada; os sapatos cremes de sola de corda atirados despreocupadamente para o chão. Ao pescoço, pendurado como que a medo, um colar de finas contas prateadas, discreto na sua beleza. “À noite brilham como estrelas”, dissera-lhe docemente o pai, quando lho oferecera pelos anos. A seu lado, abandonado na cadeira amarela de lona, o saco branco de linho grosso que a mãe tinha carinhosamente feito para ela. Sobre a mesa à sua frente, um copo de sumo de laranja meio bebido. Ao lado, desdobrado, o semanário Dúvida, temporariamente posto de parte para uma maior reflexão.
De uma das vezes reparou que uma rapariga tinha assomado à entrada da vila e que ali se tinha detido, olhando para fora, como se buscasse o que quer que fosse. Pedro Freitas voltou daí a uns tempos, como era seu hábito. E depois, e depois. Sempre que ali ia, encontrava a mesma rapariga. Um dia resolveu aproximar-se...
― Sou Pedro Freitas, jornalista do semanário Dúvida. Escrevi em tempos um artigo sobre a “Vila Redonda”, aquando da sua inauguração...
A rapariga olhou para ele atentamente e sorriu.
― Beatriz... Beatriz, apenas. É mais bonito assim.
― Sabe, de vez em quando venho até aqui. Sinto um grande desconforto desde o dia da inauguração. Aquela entrevista com o Ministro das Experiências deixou-me preocupado... E, no meu artigo, prometi aos leitores que havia de lhes dar conta do que se passaria com a “Vila Redonda”. Posso fazer-lhe uma pergunta: porque vem até à entrada da povoação e permanece aí como se buscasse...?
Beatriz olhou para Pedro. Pelos seus olhos castanhos tristes perpassou um brilho de esperança.
― Venho em busca do sonho. Lá dentro não nos deixam sonhar. É tudo tão triste... Já reparou, como é possível resistir quando se vive dentro de um mundo redondo? Não há saída, vai-se sempre parar ao mesmo sítio, anda-se às voltas, sem sentido. Desde pequenos que nos sufocam com a tradição, não nos dão espaço próprio. E argumentam que é importante para a nossa identidade cultural... De vez em quando vêm cá uns administrativos do Governo “para observação”, dizem eles. Eu e os meus amigos achamos que a tal identidade tem que correr suavemente, misturada com a busca da nossa própria identidade, naturalmente interiorizada. Mas... ninguém nos ouve.
― Como veio cá parar?
― Os meus pais pensaram que este projecto era uma oportunidade de serem mais conhecidos. Eles fazem trabalhos lindos e julgaram... Iludiram-se.
― Mas diga-me uma coisa, como explica que tanta gente continue obcecada com este estilo de vida forçado e artificial?
― Olhe, não sei bem... Mas como se há-de resistir a...? As pessoas cansam-se de si mesmas, desistem. Quando têm muitos pesadelos habituam-se a eles, parece-me. Mesmo eu, que ainda sou nova, tenho que vir aqui frequentemente em busca do sonho... Às vezes, ao fim de aqui estar um bom bocado, penso: pronto, por hoje já estou vacinada! Depois, passadas umas horas, sem quase me aperceber disso... fui engolida.
― Mas oiça uma coisa, porque não sai daqui?
― Espero fazê-lo em breve.
― Dá-me licença que publique esta minha conversa consigo?
Olhou o relógio, dobrou cuidadosamente o jornal, calçou-se, pegou no saco de linho grosso e levantou-se.
Pedro Freitas esperava-a no carro.
M
Nove Títulos, Nove Contos, Setembro de 2000
12 comentários:
Deslizando as palavras nos meus olhos parados, vejo ironia satírica à esquerda, á direita laivos de Corín Tellado ..sou primitivo (por isso limitado), mas o que leio, encanta..a humanidade a descoberto..
abraço
intruso
um jornalista "post moderno", certamente...
Como consegues dizer algo de tão importante sobre "a mentalidade redonda" que nos querem impingir.
Num CC, dos últimos e onde nunca tinha ido, a fazer horas para esperar uma amiga e tomar um café, vi um círculo. Pestanejei: nomes repetidos. Cores e formas iguais. Saí e esperei debaixo dos plátanos que desenhavam fantasmas nos passeios, melros fugidios Lembro-me dos ratinhos nos labirintos... São contos irreais, com tanto "sentido" dentro! Bjinho
Um conto exemplar... com um final feliz, para quem consegue sair da claustrofóbica "Vila Redonda". Com tudo a ver com a vida moderna. **
Sabes que estou a gostar. Muito.
Beijos lá da Paisagem.
Escrever, escrever, escrever muito, foi um conselho deixado por Yourcenar ou Duras (não me recordo bem).
Não sei se alguém o disse, mas ler, ler muito, também aperfeiçoa o gosto e a técnica, digo eu.
Aqui temos quem lê muito e parece que também escreve bastante. Pois continue, tem escrita fácil e ideias não faltam.
Fica-se (devia-se!...) tonto com tanta coisa redonda. Tonto e assustado porque tanta 'redondidade' não tem ares de parábola (mesmo que ela se arredonde)!
Gostei!
(espero que o relógio do jornalista não seja redondo...)
Abraços!
Há um convite no Transatlântico. E boa viagem.
Olha... Nem sei por onde começar! :-S
A ideia está inteligente, o início é tecnicamente eficaz, o fio muito harmonioso, com passagens de cena bem agradáveis, as descrições (a de Beatriz, fantástica!)...
Um jeitinho literário riquíssimo, neste ensaio inspirado que me deu imenso gosto a ler! :-)
E que belo final-início; porta de fuga de um mundo redondo rumo a um horizonte novo, em linha recta, sem retorno e infinito...
Grande abraço!*
Texto onde se insere a vida volátil da nossasociedade.
Bjs Zita
um lindo e belo texto ...
gostei muito.
fica um beijo com o meu carinho para ti
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