FLIRT
(Frente de Libertação de Instintos Recalcados no Tempo)
― Desistir? Não, prefiro a sua companhia ― disse ele, olhando-a bem nos olhos.
― Bom, será então melhor sentarmo-nos um pouco, não vá o atraso ser grande ― respondeu A.M., devolvendo-lhe um sorriso de cumplicidade e aconchegando a gola do casaco de malha, num gesto simultaneamente sensual e embaraçado.
― A.M.? As iniciais do seu nome? ― perguntou, fixando o alfinete de ouro que luzia por entre os longos cabelos ruivos caídos sobre os ombros bem desenhados da rapariga.
― Iniciais?! Ah! sim. ― Sacudiu os cabelos com um ligeiro movimento da cabeça e tocou ao de leve com os dedos esguios o alfinete pregado na gola do casaco.
― Deixe-me adivinhar... Ante meridiem? ― indagou ele, ao mesmo tempo que apoiava o queixo sobre a mão direita, num gesto inquiridor.
― Como?! ― A.M. olhou para o homem sentado a seu lado, tentando compreender o sentido daquela pergunta aparentemente sem nexo. Pressentiu nele um certo ar provocatório.
― “Antes do meio-dia”... ― respondeu-lhe com ar divertido, os olhos semicerrados numa observação atenta. Percebeu que o jogo de sedução a que ambos se entregavam lhe agradava também a ela. ― Gosto de mulheres bonitas pela manhã. É lindíssima a luz da manhã! Quanto a si, presumo que seja ainda mais graciosa ao nascer do sol. Se já o é ao entardecer...
― Obrigada pelo piropo. ― Sorriu, lisonjeada com a insinuação e, lentamente, levantou-se. A voz feminina no altifalante da estação anunciava o fim da avaria e o pronto restabelecimento da circulação dos comboios. ― Bom, parece que podemos finalmente seguir o nosso caminho.
Já tinha saudades destas brincadeiras inofensivas, pensou, dirigindo-se vagarosamente para a beira do cais, os seus pés tocando ao de leve a linha amarela marcada no chão. Inofensivas? E o Zé Luís? Num primeiro momento A.M. hesitou, a imagem dele interferindo com a sua vontade de brincar, mas imediatamente lhe retirou valor, ao lembrar-‑se das inúmeras desconsiderações a que ele a sujeitava nos últimos tempos. Ora, que importa? Nem sequer me merece consideração, estou farta de aturar as suas “desculpas de mau pagador”! Até prefiro quando ele nem sequer arranja explicações para as suas noitadas, que bem cheiram a esturro! É verdade que não conheço este sujeito de parte nenhuma, mas pelo menos é um bom parceiro no jogo do flirt.
― Fiz bem em não desistir da sua companhia, não acha?
― Companhia? Não sei bem se lhe chamaria companhia, talvez mais...
― Uma tentativa de companhia, é isso?
― Talvez... ― respondeu A.M., entrando com ligeireza na carruagem, antes que as portas se fechassem sobre eles. ― Nem sequer sei o seu nome...
Soltara aquela última frase sem dar por isso, mais um pensar alto do que outra coisa. Quase se arrependeu do que disse, mas com os pensamentos por vezes acontece assim, mal nos damos conta já eles saíram do seu casulo.
― O meu nome? Muito simples, apenas duas letras: N.O. ― O ar brincalhão que lhe bailava nos olhos desafiava uma vez mais a sua companheira de ocasião. ― Se adivinhar como me chamo, convido-a para jantar num restaurante muito simpático perto do meu atelier.
A.M. riu-se com gosto. O homem era mesmo insistente! E o pior é que lhe achava graça! Observava-o agora com mais atenção, ganhando tempo para lhe responder. Era na verdade uma figura atraente, de uma elegância descontraída que lhe agradava, tanto na roupa como nos gestos, para já não falar num certo ar enigmático que pairava sobre ele. Sorriu. E aquela história das siglas... denunciava um sentido de humor apurado! Aliás, os mistérios sempre a tinham fascinado, coisas deixadas por revelar davam-lhe vida, palavras meias ditas, segundos sentidos insinuados. Ou melhor, espoletavam a vida que existia dentro de si e que por vezes, por circunstâncias várias, esmorecia. E o atelier? Se ele mencionara um atelier... talvez fosse um escultor, ou um pintor. O jeito do cabelo grisalho, a postura, lembravam-lhe os mestres do estúdio para quem costumava posar aos sábados de manhã; “os iluminados pela arte”, como habitualmente lhes chamava por brincadeira. Até mesmo o entusiasmo pela luz matinal ainda há pouco manifestado lhe era bem familiar, mais as tormentas por que passava constantemente: “Vire-‑se mais para aqui, ah! assim está bem, com a luz a incidir no seu cabelo. Espectacular esta luminosidade! Óptimo, agora não se mexa.”
― Estou a ver que não é dada a adivinhas... E, se não me engano, julgo que o seu pensamento voa por outras bandas. ― N.O. forçava assim a quebra do silêncio entre ambos, depois de considerar demasiado longo o tempo de espera para a resposta à sua sugestão há pouco lançada.
― Pois engana-se redondamente, adoro enigmas. O que me parece é que não vou a tempo de conseguir adivinhar o seu nome. Saio na próxima estação... ― A.M. sondou os olhos acinzentados poisados nos seus, procurando neles alguma reacção ao que acabara de dizer.
― É pena...
― Deixe lá, pode ser que voltemos a encontrar-nos, quem sabe? Bom, então até um dia, ou até uma manhã, ao nascer do sol... ― respondeu ela, sentindo mais uma vez aquele enorme gozo interior de provocar os outros, no seu modo muito próprio de deixar coisas em suspenso.
― Nihil obstat. ― As palavras reveladoras lançadas baixinho ao ouvido de A.M., antes que as portas da carruagem se abrissem e ela saísse.
M
Gente Comum, 2000
5 comentários:
Tão terno...
Soube -me bem...
ler-te !
bj
F
Tão bom, sentir que nada impede!
Tão bom! :-)
Belíssimo fragmento de vida - essa viagem em que entramos e saímos de estações - que nos deixa a sentir e a sentir...
... Que nada impede uma alvorada!
Há uma luz muito própria nas manhãs do desejo, que só os olhares sonhadores irradiam...
Sou mais PM. Mas agradou-me muito, mais este encontro, talvez por serem 8 e tal da noite. Bjinho
Cada palavra induzindo à procura da próxima palavra..sucessivamente
palavra puxa palavra..
um abraço
intruso
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