O MAQUINISTA
Alberto Marques olhou atentamente o mar de gente que se movia apressadamente no cais, reconheceu alguns rostos que por ali via com mais frequência e entrou vagarosamente na cabina. Sentou-se diante do painel luminoso de comandos, carregou no botão de fecho das portas e pôs as carruagens
Recordava mais uma vez com nitidez assustadora a rapariga caída na linha, o corpo mole sem vida enrolado no seu próprio desespero, arrastado pela brutalidade do ferro, o grito dos travões como única companhia. Tombara inesperadamente na sua frente, o sorriso de desafio e o olhar triunfante de quem apanha o outro desprevenido colados ao vidro da cabina. Alberto Marques fincara então os dedos no manípulo de comando dos travões e aí os mantivera, na esperança de ganhar a luta contra aquela expressão provocatória que se lhe atravessara na frente. Acabara por cair num choro convulsivo e ali permanecera, sentado no seu banco de maquinista, a cabeça entre as mãos.
Nunca Alberto Marques julgara que o trabalho que actualmente exercia, e de há longa data cobiçado, viesse agora a transformar-se em pesadelo constante. Desde aquele dia fatídico que o rosto da rapariga de quem nada sabia se lhe impunha sem descanso. Imaginara-lhe um nome ― Maria Flor ―, “porque lhe devo esse afecto de lhe dar um nome”, tinha dito. Perante o ar inquiridor e atónito do colega explicara-se: “Que importa se não se chamava assim? Toda a gente é mais gente se for pensada com nome.”
Por causa de Maria Flor começou o maquinista do metro a apelidar de “redoma” a cabina dos comandos. Até aí sentira-se bem entre aquelas exíguas quatro paredes de vidro e metal, senhor do espaço à sua volta, separado da multidão imensa pelo aviso de “passagem proibida” gravado na porta por detrás do banco em que se sentava. Apenas meia dúzia de palavras cortavam por vezes o silêncio que tinha por companhia nas horas de cada turno: “É favor não forçarem as portas!” Afinal não fora senhor do espaço que julgara dominar: a morte escorrera-lhe pelo vidro à sua frente, sem que nada pudesse contra ela.
A situação penosa que vivera deixara nele marcas profundas. Passou quase a odiar o pequeno rectângulo de vidro onde agora se sentia igualmente protegido e desprotegido, num jogo de quem olha sem ver e de quem é olhado sem ser visto. Ali estão eles na plataforma, pensou, os passageiros que aguardam um comboio de carruagens guiadas por um “fantasma” em quem ninguém repara. “É favor não forçarem as portas!” Ah! o “fantasma” falou. Falou, sim, mas ninguém sabe que no vidro da sua cabina permanece uma Maria Flor que lhe turva o olhar.
Tentou aliviar o seu mal-estar procurando avidamente nas plataformas das estações rostos que se substituíssem ao outro que teimava em não o deixar. Foi assim que Alberto Marques o viu uma vez mais, ao homem do casaco azul-escuro e bigode grisalho. Ainda há pouco reparara nele. Ficara sozinho no cais, consultando o relógio de pulso, a pasta preta na mão, depois de uma corrida falhada que o impedira de alcançar a tempo as portas abertas da carruagem. Agora ali estava de novo, nesta outra estação, aguardando na primeira fila, tal qual um atleta em posição de alerta à espera do sinal de partida para a competição.
O diabo do homem não tem sossego, sempre numa roda-viva daqui para ali e dali para aqui! Às vezes até julgo que estou com alucinações, acabo de o ver num sítio e passado um bocado já está noutro! Alberto Marques matutava, agarrado aos comandos da cabina, a longa fila de carruagens seguindo-o obedientemente em direcção à estação terminal.
― Até amanhã, pá! ― Alberto Marques despedia-se agora do colega que o acompanhara até à rua, terminados os turnos de ambos.
― Amanhã cá nos encontramos! ― respondeu-lhe o outro, encolhendo ligeiramente os ombros ao jeito resignado de quem não tem outra alternativa.
Hesitou por momentos, a sua memória num rodopio à procura do lugar em que arrumara o carro. Pela manhã viera com pressa, já um pouco atrasado por causa da noite mal dormida. Há muito que não sabia o que era acordar com o sono em dia, tudo por causa dos pesadelos que lhe traziam constantemente de volta a imagem de Maria Flor. Ali está ele, o meu calhambeque de estimação! “Mesmo a caíres aos bocados e a mexeres-te devagar, ainda fazes o teu trabalho!”, disse-lhe Alberto com afecto, saindo lentamente do parque de estacionamento ao volante do seu Seat Ibiza.
Bem posso despachar-me, não tarda está lá o homem a bater-me à porta. Tinha ainda no ouvido a sua voz arrastada: “Senhor Alberto Marques? Fala Leonel, da Companhia de Seguros. Queria saber se posso passar por aí um dia destes para receber o cheque do seguro do carro.” A voz era-lhe familiar, de anos anteriores, mas nunca chegara a conhecer o homem, porque sempre que ele telefonava já Alberto se adiantara com o pagamento através do Multibanco. Desta vez o cobrador antecipara-se, por essa razão combinara recebê-lo pela hora do jantar.
Hoje estou com sorte, com lugar de luxo para o calhambeque, mesmo à porta de casa! Vá lá, nem tudo corre mal. Alberto certificou-se pela última vez que o carro estava bem estacionado e dirigiu-se para a entrada de casa. Bafejara-o a sorte por ter arranjado aquele sítio tão perto, depois de semanas de mil voltas ao bloco de prédios altos, acabando o Seat acomodado longe, num canto esconso.
“Senhor Alberto Marques? É Leonel, da Companhia de Seguros.” Um toque de campainha, a voz arrastada fazendo-se anunciar através do intercomunicador, depois o ruído do elevador na sua marcha lenta até ao quarto andar.
Alberto tinha agora diante de si o homem do fato azul-escuro e bigode grisalho. Segurava na mão esquerda uma pasta preta de onde retirava cuidadosamente com a mão direita o recibo do seguro do carro.
Gente Comum, 2000
10 comentários:
Gente comum, com lágrimas. As sensibilidades que tanto nos fazem sofrer, quando alguém diz:"pensamento positivo" e é como se pusesem álcool na ferida. Alberto Marques, só e cumpridor, reparador de detalhes, que ternura nos dá! Bjinho
Muito interessante este teu blogue. Parabéns!
Abraço,
FMOP
Um encontro que tinha que acontecer obrigatoriamente e foi sendo preparado antecipadamente?
É bom voltar a ler-te e reencontrar essa forma de dizer os sentimentos diários. Gente comum? Sim, mas tão bem adivinhada por ti. Adorei a surpresa/coincidência (?) do encontro. Dá o toque perfeito na narrativa. **
Gostei desta tão bem contada história. Coincidências da vida? É o que acontece todos os dias connosco. Cruzamo-nos aqui e acolá, longe de conhecermos os dramas dos que passam às vezes tão perto de nós.
Onde conheceste Alberto Marques?
Esta tua história tão real, que escreves de uma maneira tão própria, poderia ter-te sido contada por ele...
Gosto muito!
um beijo,
amigo
Frioleiras
Gostei muito de te ler. Uma faceta tua menos explorada aqui neste teu cantinho.
Beijos
Narrativa comprida q.b., ao estilo de um conto, muito bem escrita e com todos os ingredientes para prender a atenção do leitor do princípio ao fim.
Publicaste um livro de contos com este título, em 2000?
Narrativa com a dose certa de sensibilidade, que me prendeu do principio ao fim, desejando continuação...
Um abraço carinhoso
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