domingo, junho 17, 2007

Reflexões Caseiras 3

PENSAMENTOS SOLTOS. OU PRESOS?

Densitometria óssea: “Fica marcada para as 14.15 do dia 16 de Outubro. É preciso trazer autorização dos serviços clínicos.”, dissera-me a empregada do consultório, ao telefone. (Caso contrário não lhes pagam e devolvem-lhes as requisições dos exames pedidos por médicos idóneos). Já tinha conhecimento dessa exigência de experiência anterior, no tal dia em que não pude fazer uma radiografia por não apresentar o carimbo obrigatório. Sempre atenciosa a rapariga, bem lhe conheço a voz.


Meto-me no metropolitano. Uma vez mais. Hoje, a caminho do consultório médico.
E a densitometria da vida? Medimos tudo. Também medimos a vida? “90.4% de satisfação. Com tendência para subir”, li no cartaz de fundo vermelho vivo, enquanto esperava no cais. Subir? Como o balão que a mão da criança deixou escapar? ― “Sobe, sobe, balãozinho. Sobe, sobe pelo ar... Oh! rebentou.” ―.
― Dá-me licença? ― perguntei, levantando o meu pé com cuidado redobrado, não fosse ele pisar desastradamente o joanete que se adivinhava por baixo do sapato deformado que se atravessava no meu caminho. ― Dá-me licença? ― voltei a inquirir. ― Tenho receio de a pisar.
― Desculpe, estava distraída ― respondeu-me a senhora de cabelos brancos, ajeitando as pernas para trás de modo a que os pés ficassem a salvo debaixo do banco. ― Tem toda a razão, ainda há minutos ia apanhando uma pisadela das grandes, de um cavalheiro bem parecido que saltou porta fora, a correr atrás de um romance...
― Parece-me difícil saltar aqui dentro, num espaço tão superlotado... ― comentei, sorrindo para ela.
― Lá isso é verdade, mas há cabelos ruivos que têm poderes mágicos... ― respondeu-me com ar enigmático.
Limitei-me a dizer que sim com a cabeça, tentando mostrar-lhe que concordava inteiramente com ela, independentemente de conhecer ou não o episódio a que se referia. Em seguida optámos ambas pelo silêncio observador deste open space subterrâneo, em detrimento da continuação da conversa. Aparentemente contraditória esta ideia de “open space subterrâneo”... pelo significado atribuído a cada palavra... menos contraditória à luz de uma segunda análise. Assim viajava eu, entregue às minhas deambulações de ocasião, quase perdendo o rasto de mim própria, quando o avistei.
Entrou a meio caminho, na estação da Alameda. Os olhos da cor do fumo olhando em frente, sem nada verem. Segurava na mão a bengala, companheira de passos medidos na procura de referências: a porta, a coxia estreita, a outra porta ao fundo da carruagem. “Tenham a bondade de me auxiliar com a vossa esmola”, a frase repetida até à exaustão por entre a mudez dos passageiros, não fosse ela passar despercebida a algum ouvido menos atento. Há quem não se mexa, há quem sustenha a respiração, há quem guarde as palavras, há quem se incomode. E ele ali exposto, ele que não pode ver as cores dos olhos que o observam, porque os dele são brancos, opacos, parados.
A mudez dos passageiros, a mudez dos seus pensamentos sem voz. “Sem vós?, without you?”, perguntaria o inglês, de férias em Portugal, o dicionário sempre à mão para o caso de... Pois, “a língua portuguesa tem destas coisas, é muito traiçoeira, pequenas “cascas de banana” debaixo dos pés”. De certeza que a amiga que dá aulas há quatro anos na escola de línguas ao pé da estação do metropolitano o tinha avisado; a tal inglesa loira com a cara polvilhada de sardas ― à semelhança do pó de canela no doce de farófia ―. Só que ele não acreditava que uma casca de banana pudesse estar noutro lado, para além da mão do macaco no jardim zoológico e da mão do seu parente Homem; e do prato, de preferência o de sobremesa... Ah! no chão também, faz parte do estilo português, já que não temos neve e é tão bom escorregar... Até serve de treino, para depois botarmos figura nas montanhas da nossa vizinha Espanha. Lá para o fim do ano, é de ver. “Não, Mister Somebody, trata-se neste caso de “pensamentos sem voz”, com “z”. Não sei como é na sua terra, mas por cá nem sempre os outros preenchem os nossos pensamentos, limitamo-nos nessas ocasiões a um diálogo interior privado. Economia de energia cerebral e aproveitamento de espaço!...” “Oh! I see!”, diria ele, o tal Mister, e acrescentaria: “But I like you!” “Pois, isso ficará para “segundas núpcias”, dê tempo ao tempo!” “How come?”, perguntaria ele, procurando freneticamente a resposta no dicionário de bolso. “Sêgundachs nupciáchs? But I’m single, I never got married!
Assim correm alguns dos meus dias pelas entranhas da terra. Quando por lá andamos temos que nos distrair, senão a amargura mata-nos. Saímos de casa com a ideia de arejar o espírito, para além de qualquer outro objectivo mais sério, ― porquê, arejar o espírito não é sério? ― e afinal somos constantemente confrontados com coisas que nos incomodam.
Quando os vejo, a estes cegos que circulam de carruagem em carruagem, fico constrangida e admiro-me como conseguem expor-se desta maneira aos olhos de todos nós. Expostos andamos nós, claro, mas quem vê... pelo menos sempre tem a ilusão de que controla o olhar alheio. Ou será precisamente por não poderem ter essa experiência que eles se “entregam” deste modo nas mãos dos outros, ou melhor dizendo, nos olhos dos outros? Se assim for...
Igualmente há dias aqui encontrei duas raparigas, também elas cegas. Entraram com à-vontade na carruagem, de braço dado, nas mãos livres as bengalas, penduradas ao pescoço as caixas das esmolas. Percorreram o corredor de ponta a ponta, a conversa animada entrecortando o habitual pedido de auxílio, neste caso pouco insistente. Não me pareceram tristes, senti nelas alguma alegria de viver, como quem vai passear ao jardim, como se as caixas vazias pouco as incomodassem. Reparei que uma delas tinha o cabelo comprido pintado de louro, caindo-lhe suavemente sobre os ombros. Dou agora comigo a cismar por que razão pintará o cabelo, pois se não vê!... Talvez tenha alguém muito próximo que a aprecie com olhos que vêem, talvez um namorado ou um marido que a amam; uma mãe que, para além de a amar, se amargura por ela não a poder ver. Porque as mães gostam de se encontrar nos olhares dos filhos. Será então que esta mãe e esta filha se reconhecem: no sabor das palavras; nos sons do mundo; no perfume do que se cheira, os olhos semicerrados; no toque leve dos dedos que alisam rugas e desfazem nós? É isso, se conseguirmos transpor a barreira, chegamos lá! Qual barreira?
A dos invólucros. Todos vimos a este mundo com um. Mais feio, menos feio, mais transparente, menos transparente... depois é só questão de o alindar, ou desfear. Mais laço, menos laço... o senhor e a senhora Subjectivo sempre por perto. Mas esta história dos invólucros será certamente mais complexa do que parece à “primeira vista”. Lá está ela outra vez, a língua portuguesa é mesmo traiçoeira! Que diria o Mister Somebody neste caso?
“Ó avó, então é só isto?”, perguntou o rapazinho sentado na minha frente, depois de ter retirado os laçarotes que seguravam o papel vistoso do embrulho. Eu tinha observado atentamente os seus gestos e reparado na expressão sonhadora e expectante que acompanhara o trabalho árduo de que a avó o incumbira. Notei-lhe de seguida a frustração estampada no rosto, ao deparar-se com o objecto ridículo no fundo do pacote. Quanto a mim, que desde o princípio me deixara absorver por esta cena, tenho a dizer que, quando me virei para a janela, encontrei aí a minha imagem reflectida no vidro, juntamente com a do rapazinho. Vislumbrei então a minha cara, presa nos laços e laçarotes dos embrulhos que tenho vindo a desfazer ao longo da vida, em busca do que afinal não estava lá.

Nome do médico responsável pelo pedido de uma “Densitometria da vida” (para controlo): Dr. Tempo.
Diagnóstico sob reserva: vidaporose.
Tratamento de manutenção sugerido: continuação de ginástica mental diária até ao fim da vida.

M

Gente Comum, 2000



11 comentários:

Leonor Vieira disse...

Bom dia Manuela. Vieram-e as lágrimas aos olhos, com a bela frase a "Densiometria da vida"
Este texto reflecte bem que os olhos falam por si.O olhar para o lado, sentir os outros,pintá-los com a cor da vida.
Um bom domingo para ti.
beijos
Leo

None disse...

Crónica de um dia na cidade, grande capacidade de observação do que nos rodeia, que já mostrou noutros textos anteriores(nem todos somos capazes disso, não é fácil)e uma conclusão muito sábia. Gostei M.

APC disse...

Magnífico!... Palavra a palavra, com o ritmo e no balanço da carruagem do pensamento, no subsolo da reflexão.

Quanto aos cabelos loiros da moça cega, os que vêem parecem esquecer que mais fazemos por sermos belos aos olhos dos outros do que aos nossos, e que, por isso mesmo, cuida-se quem tiver porquê e por quem, que sem olhos para o olharem não se faria, certamente.
E sim, há invisuais com uma capacidade quase total de adaptação à frenética rotina das grandes cidades. Se te deres ao luxo de beber um café numa qualquer universidade, por exemplo, espera que apareça um e observa como aparentam ser poucas as diferenças dele aos outros.
Há tempos, ia atrás de um casal que se preparava para entrar numa escola. Muito novos, de braço dado, ambos sem bengala, entregues a cumplicidades, sorrindo. Abrem a porta de vidro, entram no átrio. Grande beijo e abraço de despedida. Ela avança para as escadas que a levariam à sala, ele regressa pelo caminho que haviam feito. Como fez este para se proteger de um acaso que poderia levar a pesada porta de vidro a bater-lhe, foi quase imperceptível. Como nós - todos nós - cuidamos de nos proteger daquilo que nos magoa na vida, também o é!...
Belíssimo texto, Manuela!
O final - aquela parte que começa no restinho do penúltimo parágrafo até não mais haver palavras - fecha com verdadeira mestria essa ginástica mental viajante que partilhaste connosco e que soube tão bem!

"Densiometria da vital"... Muito bom! :-)

Um grande abraço.

jawaa disse...

Vim saber de ti... encontrei-te por aí. Sim, é preciso manter o tratamento, a tal ginástica mental diária.
Força!
Beijinho

vida de vidro disse...

Há neste texto uma extraordinária agilidade de escrita, de associação de ideias. De certeza que praticas assiduamente essa ginástica mental. "Densitometria da vida"... pois, todos devíamos fazer esse exame. **

Anónimo disse...

A história desliza à velocidade do combóio do metropolitano, as personagens entram para se apearem uma ou duas estações depois, a ligá-las fica o fio da tua imaginação.
Gosto muito destes teus exercícios de ginástica mental, na minha opinião rítmica...

bettips disse...

Um sonho enquanto lido. Porque tão chegado a nós, flui naturalmente. Flexões mentais, cálcio em palavras e actos...não sei o que é mais difícil. Adorei o texto (é bom vir ler-te). E os comentários também. Bjinho

APC disse...

* Enganei-me: escrevi "da vital" e queria escrever "da vida"... De Vidaporose, pois!...

Anónimo disse...

humm..desilusão dum nascer?
..estranho mundo este..

um abraço

intruso

Manuel Veiga disse...

um texto cinéfilo. no movimento e no cruzar de linhas e referências.

gostei muito.

Mónica disse...

isto é surpreendente, em cada palavra esconde-se uma ideia/supresa e andamos aos ziguezagues pela história, surrealista e bela :D