Todas as fotos trazem histórias agarradas. Por coincidência, duas das últimas com que entrei no jogo "Fotodicionário" têm, por detrás, histórias de família ("linhas" e "rosto").:
Relativamente a esta, andava eu a "meter o nariz" no conteúdo de uns caixotes que estavam no sótão da nossa casa de família, na Quinta da Ponte do Arco(quem quiser conhecê-la pode visitar o meu post "Ponte do Arco (A Obra)" de 21 de Fevereiro de 2007), quando me deparei com este retrato a carvão, amarrotado e mal-tratado pelo tempo e pela ausência de estima, assinado pela minha tia-bisavó Albertina Augusta (coitada da senhora... que nome lhe haviam de ter dado!). Fiquei, desde logo, fascinada. Mais deliciada fiquei quando reparei na data do dito retrato: nada mais nada menos que o dia exacto do meu aniversário, mas quase cinquenta anos antes de eu ter nascido... de imediato me apaixonei por aquele rosto, de "buço" e olhos indubitavelmente muito claros - verdes, possivelmente - e baptizei-o de "Esmeralda".
Fiquei cheia de dúvidas quanto ao modelo, tal como vocês, meus amigos. Encontrei como resposta provável que tivesse sido um retrato desenhado às escondidas, pela minha tia-bisavó Albertina, recorrendo a uma empregada como modelo. Empregada doméstica não deveria ser, pois não apresentava o uniforme característico, poderia ser uma lavadeira, ou então, era uma encenação em que a/o modelo vestia roupas domingueiras, escondia o cabelo numa espécie de turbante e punha uns brincos compridos. Tudo meras possibilidades... a verdade partiu para sempre com a Tia Albertina (que tive o prazer de conhecer e com quem convivi intensamente desde a minha infância até aos vinte e tal anos, dado que ela morreu com cerca de noventa).
Resta-me acrescentar, a título de curiosidade, que a autora do retrato a carvão era neta, filha e irmã de pintores famosos da nossa praça, todos eles alunos e, mais tarde, professores nas Belas-Artes (um dos irmãos até ganhou vários prémios Valmor, tendo sido um dos arquitectos mais conhecidos do "Estado Novo", autor de obras de época como a Praça do Areeiro e as chamadas "Avenidas Novas", bem como a sua própria residência em Lisboa, igualmente objecto de prémio Valmor).
A tia Albertina que, segundo consta, tinha herdado do pai e do avô a verdadeira arte de pintar e desenhar (quadros de ambos, mas principalmente do avô, podem encontrar-se no Museu de Arte Contemporânea, no Chiado) - tenho aguarelas e óleos pintados por ela, devidamente cuidados e amados, como merecem - viu negada a sua vontade de aceder, contrariamente aos irmãos, obviamente do sexo masculino, às Belas-Artes, porque uma menina da aristocracia (ainda que praticamente arruinada), mesmo numa família de artistas pelo lado paterno, tinha mais era que casar e ter filhos e comportar-se como uma senhora de sociedade. O marido, inclusivamente, veio a proibi-la de pintar, razão pela qual penso que o retrato terá sido feito às escondidas...
Enfim... outros tempos... em que a mulher, de forma submissa, tinha que obedecer e não questionar... primeiro, os pais, depois, o marido. Pobre tia Albertina Augusta! Mas o orgulho que ela tinha nos muitos quadros do pai e do avô que lhe revestiam as paredes da casa!... Também havia por lá quadros de outros artistas de renome, amigos da família, como os irmãos Bordalo Pinheiro ou o Cottineli Telmo a quem ela, ternamente, chamava apenas "Telmo", quando contava algum episódio passado entre eles.
Quanto à Esmeralda, olho-a quase todos os dias, numa parede de minha casa. Adoro aquele contraste entre o buço e os olhos claros, sonhadores... de vez em quando vejo-a/o piscar-me o olho!!! ;) (risos).
Para onde vão os anjinhos quando morrem? para o limbo, não é? Então, será para essas bandas que terás que procurar o já suado comment que aqui estivera a compor. Foi-se, sem aviso prévio. Tentarei retomar de memória o que fizera de inspiração momentânea.
Comecei por te mostrar que, uma vez que o prometido é devido, estava de retorno com calma e tempo para comentar o teu post. Outra coisa não seria devida a quem sabe bem receber.
Fiz o que era de fazer: pus mãos "À Obra" e fui ver a Quinta da Ponte do Arco. Com a minha ideia fixa de pôr as coisas nos lugares ainda pensei em ir ao GoogleEarth ver onde era a Ponte do Arco; não fui após a explicação que de um arco mesmo se tratava. Tinha linha de combóio por perto, seria a do Norte?
Depois dizia, com alguns detalhes apurados, que gostava, ao meu jeito - que é o de não adverbiar as emoções - gostava, reitero, do que escreveste sobre a casa e a quinta, em primeiro lugar; e da casa e da quinta que escreveste, em segundo.
Admiro as casas (e as quintas que são continuações ao avesso das casas, como o forro das mangas dos casacos) com história por dentro e estórias à volta. Eu que não nasci num lugar assim, digamos por zelo de linguagem que nasci num lugar comum, tenho pena. Talvez por isso que ande a fazer eu próprio o meu lugar, um lugar bonito para morrer. Que é assim que eu gostava. É a minha Obra.
Tem muitas semelhanças com a tua: branca por fora e debroada com a tal listinha azul; sótãos e enconsos para guardar tralha do século passado; a buganvília já lá esteve, mas num dia de Inverno foi-se com a geada; a falta de um rio ou ribeiro levou-me a arteficializar um lago que agora tem peixes e uma rã com quem devaneio; e outras coisas.
Os meus jardins não têm goivos. Mas falo-te disto porquê? Tem uma explicação: ando a ler o "não entres tão depressa nessa noite escura" e o António só fala de goivos e do Luís Filipe. Mas será coincidência? Eu que não acredito em coincidências! Se uma coisa tem que acontecer, e se outra tem que acontecer, porque não hão-de ambas que acontecer aqui e agora? Que mal faz? Probabilidades independentes... Sair cara duas vezes? A moeda continua a ser honesta. Desonesto é roubar aos ricos para dar aos pobres.
E os meus sótãos não têm retratos a carvão, só impressões a cópia de carbono ou a laser que é o que mais se parece.
Vem então a estória agarrada ao retrato a carvão. Traz data, a mesma data do dia do teu nascimento. Mas será coincidência? Eu que não acredito em coincidências!
"Os olhos e Joaninha eram verdes... não daquele verde descorado e traidor da raça felina, não daquele verde mau e destingido que não é senão azul imperfeito, não, eram verdes-verdes, puros e brilhantes como esmeraldas do mais subido quilate.
São os mais e mais fascinantes olhos que há."
É que ando a ler também o João Baptista Leitão. Eu que não acredito em coincidências!
"Os raios verdes de teus olhos, faiscantes como esmeraldas, atravessaram o espaço e foram luzir no meio daqueloutros lumes que me cegavam. A esteva brava, o tojo áspero da nossa charneca mandavam-me ao longe as exalações de seu perfume agreste, e matavam o suave cheiro do feno macio dessas relvas sempre verdes que me rodeavam. As folhas crespas, secas, alvacentas das nossas oliveiras como que me luziam por entre a espessura cerrada da luxuriante vegetação do norte, prometendo-me paz ao coração, anunciando-me o fim de uma peleja em que mo dilaceravam as paixões."
A seguir temos duas estórias (histórias?) que se cruzam na reciprocidade do ver e do ser visto, do pintar e do ser pintado: Esmeralda / Tia Albertina. Quem é uma e outra? O objecto insinua-se ao nosso reconhecimento através de ícones: o uniforme, o turbante, os brincos. E reconjectura-se: será uma empregada? Uma lavadeira? Uma encenação? Parece que a verdade teria partido com a tia Albertina. A tia Albertina, não. É real de carne e osso e a sua comprovada existência e identidade prolongam-se no tempo:
para trás, através dos pergaminhos de família; para diante, pela sua vestutez. E prova disso é a convivência intensa, como se tivesse ressuscitado para se apresentar aos herdeiros antes de subir ao céu.
A descrição da tia Albertina é longa, precisa e detalhada; a da Esmeralda é sucinta, vaga e generalista.
E o mistério impõe-se: mas quem era a Esmeralda? Volto ao Lobo Antunes: mas quem era a Adelaide?
Esmeralda / Tia Albertina indissociavelmente irmanadas na vida real, nem que passageiramente. Agora irremediavelmente unidas num retrato a carvão. Partilhando o seu segredo numa outra dimensão a que ainda não ganhámos acesso.
11 comentários:
Tem a expressão determinada de uma "Maria da Fonte", ou de uma "Padeira de Aljubarrota"
Quem é?
Uma expressão de rosto um pouco dúbia...Tão depressa parece uma mulher masculinizada como o de um homem adamado.
Agora fiquei curiosa... De quem será este retrato a carvão?...
Mulher de rosto duro. Mulher de pescador? Todavia, serena...
Belo desenho, boa fotografia!...
Abraço.
A dureza (do trabalho?) escrita no rosto...
Todas as fotos trazem histórias agarradas. Por coincidência, duas das últimas com que entrei no jogo "Fotodicionário" têm, por detrás, histórias de família ("linhas" e "rosto").:
Relativamente a esta, andava eu a "meter o nariz" no conteúdo de uns caixotes que estavam no sótão da nossa casa de família, na Quinta da Ponte do Arco(quem quiser conhecê-la pode visitar o meu post "Ponte do Arco (A Obra)" de 21 de Fevereiro de 2007), quando me deparei com este retrato a carvão, amarrotado e mal-tratado pelo tempo e pela ausência de estima, assinado pela minha tia-bisavó Albertina Augusta (coitada da senhora... que nome lhe haviam de ter dado!). Fiquei, desde logo, fascinada. Mais deliciada fiquei quando reparei na data do dito retrato: nada mais nada menos que o dia exacto do meu aniversário, mas quase cinquenta anos antes de eu ter nascido... de imediato me apaixonei por aquele rosto, de "buço" e olhos indubitavelmente muito claros - verdes, possivelmente - e baptizei-o de "Esmeralda".
Fiquei cheia de dúvidas quanto ao modelo, tal como vocês, meus amigos. Encontrei como resposta provável que tivesse sido um retrato desenhado às escondidas, pela minha tia-bisavó Albertina, recorrendo a uma empregada como modelo. Empregada doméstica não deveria ser, pois não apresentava o uniforme característico, poderia ser uma lavadeira, ou então, era uma encenação em que a/o modelo vestia roupas domingueiras, escondia o cabelo numa espécie de turbante e punha uns brincos compridos. Tudo meras possibilidades... a verdade partiu para sempre com a Tia Albertina (que tive o prazer de conhecer e com quem convivi intensamente desde a minha infância até aos vinte e tal anos, dado que ela morreu com cerca de noventa).
Resta-me acrescentar, a título de curiosidade, que a autora do retrato a carvão era neta, filha e irmã de pintores famosos da nossa praça, todos eles alunos e, mais tarde, professores nas Belas-Artes (um dos irmãos até ganhou vários prémios Valmor, tendo sido um dos arquitectos mais conhecidos do "Estado Novo", autor de obras de época como a Praça do Areeiro e as chamadas "Avenidas Novas", bem como a sua própria residência em Lisboa, igualmente objecto de prémio Valmor).
A tia Albertina que, segundo consta, tinha herdado do pai e do avô a verdadeira arte de pintar e desenhar (quadros de ambos, mas principalmente do avô, podem encontrar-se no Museu de Arte Contemporânea, no Chiado) - tenho aguarelas e óleos pintados por ela, devidamente cuidados e amados, como merecem - viu negada a sua vontade de aceder, contrariamente aos irmãos, obviamente do sexo masculino, às Belas-Artes, porque uma menina da aristocracia (ainda que praticamente arruinada), mesmo numa família de artistas pelo lado paterno, tinha mais era que casar e ter filhos e comportar-se como uma senhora de sociedade. O marido, inclusivamente, veio a proibi-la de pintar, razão pela qual penso que o retrato terá sido feito às escondidas...
Enfim... outros tempos... em que a mulher, de forma submissa, tinha que obedecer e não questionar... primeiro, os pais, depois, o marido. Pobre tia Albertina Augusta! Mas o orgulho que ela tinha nos muitos quadros do pai e do avô que lhe revestiam as paredes da casa!... Também havia por lá quadros de outros artistas de renome, amigos da família, como os irmãos Bordalo Pinheiro ou o Cottineli Telmo a quem ela, ternamente, chamava apenas "Telmo", quando contava algum episódio passado entre eles.
Quanto à Esmeralda, olho-a quase todos os dias, numa parede de minha casa. Adoro aquele contraste entre o buço e os olhos claros, sonhadores... de vez em quando vejo-a/o piscar-me o olho!!! ;) (risos).
Um rosto que fala...
Muito bonito.
Gostei tanto de te ler...
...Claro que fui lá, à "Obra" como se andasse em cima dos teus pés, para não pisar recordações que não são minhas. Bj
Para onde vão os anjinhos quando morrem? para o limbo, não é? Então, será para essas bandas que terás que procurar o já suado comment que aqui estivera a compor. Foi-se, sem aviso prévio. Tentarei retomar de memória o que fizera de inspiração momentânea.
Comecei por te mostrar que, uma vez que o prometido é devido, estava de retorno com calma e tempo para comentar o teu post. Outra coisa não seria devida a quem sabe bem receber.
Fiz o que era de fazer: pus mãos "À Obra" e fui ver a Quinta da Ponte do Arco. Com a minha ideia fixa de
pôr as coisas nos lugares ainda pensei em ir ao GoogleEarth ver onde era a Ponte do Arco; não fui após a explicação que de um arco mesmo se tratava. Tinha linha de combóio por perto, seria a do Norte?
Depois dizia, com alguns detalhes apurados, que gostava, ao meu jeito - que é o de não adverbiar as
emoções - gostava, reitero, do que escreveste sobre a casa e a quinta, em primeiro lugar; e da casa e da
quinta que escreveste, em segundo.
Admiro as casas (e as quintas que são continuações ao avesso das casas, como o forro das mangas dos
casacos) com história por dentro e estórias à volta. Eu que não nasci num lugar assim, digamos por zelo
de linguagem que nasci num lugar comum, tenho pena. Talvez por isso que ande a fazer eu próprio o
meu lugar, um lugar bonito para morrer. Que é assim que eu gostava. É a minha Obra.
Tem muitas semelhanças com a tua: branca por fora e debroada com a tal listinha azul; sótãos e enconsos para guardar tralha do século passado; a buganvília já lá esteve, mas num dia de Inverno foi-se com a geada; a falta de um rio ou ribeiro levou-me a arteficializar um lago que agora tem peixes e uma rã com quem devaneio; e outras coisas.
Os meus jardins não têm goivos. Mas falo-te disto porquê? Tem uma explicação: ando a ler o "não entres tão depressa nessa noite escura" e o António só fala de goivos e do Luís Filipe. Mas será coincidência? Eu que não acredito em coincidências! Se uma coisa tem que acontecer, e se outra tem que acontecer, porque não hão-de ambas que acontecer aqui e agora? Que mal faz? Probabilidades independentes... Sair cara duas vezes? A moeda continua a ser honesta. Desonesto é roubar aos ricos para dar aos pobres.
E os meus sótãos não têm retratos a carvão, só impressões a cópia de carbono ou a laser que é o que mais se parece.
Vem então a estória agarrada ao retrato a carvão. Traz data, a mesma data do dia do teu nascimento. Mas será coincidência? Eu que não acredito em coincidências!
"Os olhos e Joaninha eram verdes... não daquele verde descorado e traidor da raça felina, não daquele verde mau e destingido que não é senão azul imperfeito, não, eram verdes-verdes, puros e brilhantes como esmeraldas do mais subido quilate.
São os mais e mais fascinantes olhos que há."
É que ando a ler também o João Baptista Leitão. Eu que não acredito em coincidências!
"Os raios verdes de teus olhos, faiscantes como esmeraldas, atravessaram o espaço e foram luzir no meio daqueloutros lumes que me cegavam. A esteva brava, o tojo áspero da nossa charneca mandavam-me ao longe as exalações de seu perfume agreste, e matavam o suave cheiro do feno macio dessas relvas sempre verdes que me rodeavam. As folhas crespas, secas, alvacentas das nossas oliveiras como que me luziam por entre a espessura cerrada da luxuriante vegetação do norte, prometendo-me paz ao coração, anunciando-me o fim de uma peleja em que mo dilaceravam as paixões."
A seguir temos duas estórias (histórias?) que se cruzam na reciprocidade do ver e do ser visto, do pintar e do ser pintado: Esmeralda / Tia Albertina. Quem é uma e outra? O objecto insinua-se ao nosso reconhecimento através de ícones: o uniforme, o turbante, os brincos. E reconjectura-se: será uma empregada? Uma lavadeira? Uma encenação? Parece que a verdade teria partido com a tia Albertina. A tia Albertina, não. É real de carne e osso e a sua comprovada existência e identidade prolongam-se no tempo:
para trás, através dos pergaminhos de família; para diante, pela sua vestutez. E prova disso é a convivência intensa, como se tivesse ressuscitado para se apresentar aos herdeiros antes de subir ao céu.
A descrição da tia Albertina é longa, precisa e detalhada; a da Esmeralda é sucinta, vaga e generalista.
E o mistério impõe-se: mas quem era a Esmeralda? Volto ao Lobo Antunes: mas quem era a Adelaide?
Esmeralda / Tia Albertina indissociavelmente irmanadas na vida real, nem que passageiramente. Agora irremediavelmente unidas num retrato a carvão. Partilhando o seu segredo numa outra dimensão a que ainda não ganhámos acesso.
E se a Esmeralda não fosse uma pessoa mas duas?
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