quinta-feira, fevereiro 27, 2014

O DESAFIO DE HOJE

Dia 27 - Fotografando as palavras de outros sobre os dois excertos abaixo transcritos. 
 
«(...) Estava a sentir a acção de emoções contraditórias, e precisava de se agarrar ao que em si havia de melhor, os seus pensamentos mais meigos acerca dela, pois de outro modo parecia-lhe que iria sucumbir, ou simplesmente ceder. Sentia um peso líquido nas pernas quando atravessou o quarto para recuperar as cuecas caídas no chão. Vestiu-as, pegou nas calças e ficou um bocado com elas penduradas da mão a olhar pela janela, a ver as árvores encolhidas pelo vento, agora escuras e reduzidas a uma mancha contínua de um verde acinzentado. Lá no alto havia uma meia-lua fumarenta, praticamente sem brilho. O som das vagas a desfazerem-se na praia a intervalos regulares interferia com os seus pensamentos, como um botão de súbito comutado, e enchia-o de fadiga; as leis e processos incessantes do mundo físico, da lua e das marés, que em geral pouco interesse lhe despertavam, não eram minimamente alterados pela sua situação. Este facto mais que óbvio era duríssimo. Como podia conviver com eles, sozinho e sem ter quem o apoiasse? E como podia descer e enfrentar Florence na praia, onde suspeitava que ela devia estar? Sentiu as calças pesadas e ridículas na mão, esses tubos de tecido paralelos, unidos numa extremidade, uma moda arbitrária de séculos recentes. Parecia-lhe que vesti-las iria devolvê-lo ao mundo social, às suas obrigações e à verdadeira dimensão da sua vergonha. Uma vez vestido, teria de ir procurá-la. E por isso demorava-se.»

«Quando pensava nela, ficava pasmado por ter deixado partir aquela rapariga com o seu violino. (...) Tudo de que ela precisava era da certeza do seu amor e de que ele lhe garantisse que não havia pressa, quando tinham a vida inteira pela frente. Amor e paciência - se ao menos tivesse possuído os dois ao mesmo tempo - por certo tê-los-iam ajudado aos dois. (...) É assim, não fazendo nada, que todo o curso de uma vida pode ser alterado. Na praia de Chesil ele poderia ter chamado Florence, poderia ter ido no seu encalço. Não sabia, ou não quis saber que, quando ela fugiu dele, segura na sua angústia de que estava prestes a perdê-lo, ela nunca o amara mais, ou mais desesperadamente, que o som da sua voz teria sido uma libertação, e que ela teria retrocedido. Em vez disso, permaneceu no frio e no silêncio virtuoso do fim daquele dia de Verão, vendo-a caminhar apressada pela praia, com o som do seu avanço penoso abafado pelas pequenas vagas, até se tornar uma mancha indistinta, um ponto a desaparecer contra a imensa estrada de seixos a brilhar na luz pálida do lusco-fusco.»

Na Praia de Chesil, Ian McEwan, Gradiva, Abril de 2007

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