quinta-feira, março 12, 2015

7. M.



Não te espantes com o que ainda vais encontrando nalgumas zonas rurais de Portugal, em contraste com as tecnologias do mundo actual.
Ao olhar para a senhora da minha fotografia, penso de imediato nas máquinas de lavar roupa cheias de automatismos e na facilidade que é meter-lhes dentro a roupa e esperar apenas que ela cumpra a tarefa até ao fim, de acordo com o programa escolhido. Embora no dia em que ali passei não me tenha parecido que esta senhora estivesse contrariada com o trabalho que executava, nem faço ideia se se trataria de uma escolha esporádica, na verdade todos sabemos ser muito mais penoso lavar roupa manualmente. Exige ensaboar cada peça em separado, enxaguá-la uma e outra vez, torcê-la com a força de braços e mãos, senti-las geladas, os dedos doridos, e depois carregar o fardo no alguidar, porventura à cabeça, ou amparado nos braços. Vermelho o alguidar, a lembrar o coração que se transporta sempre connosco, breve o repouso, longas as horas marcadas nas rotinas diárias. Reconheço tudo isso, mas encanta-me a arquitectura destes tanques amplos, testemunhas de ocupações e convívios antigos. Não há muitos anos era lugar de risos, de mágoas ora confessadas ora adivinhadas, de boatos, de segredos, de histórias de fugas pela calada da noite, a fronteira com Espanha tão perto, à distância de um salto arriscado. Permanecerá lugar de encontros, embora esvaziada de gente a aldeia, adormecidas as casas aguardando os emigrantes do verão?
Atravessei a pé Soutelinho da Raia em agosto de 2010 a caminho de Santiago de Compostela, abordei a senhora lavadeira com o propósito de lhe pedir autorização para a incluir na fotografia que eu desejava tirar, e ela aceitou, sorridente. Quase cinco anos passados, pergunto-me como se chamará, se ainda vive, onde mora. Sozinha? Acompanhada? Terá nascido na aldeia? E imagino-a criança, ajudando a mãe, talvez debruçada na janela à espera do pai, talvez a brincar com outros meninos ao jogo da macaca desenhado com um graveto qualquer no chão de terra batida. Talvez... Talvez...
Sem respostas às minhas interrogações, apenas sei que o tempo escorre nas diversas paisagens da existência. 
M

8 comentários:

Justine disse...

Um texto riquíssimo de beleza e de sabedoria antiga...e a imaginação em deambulações serenas pelo passado, que às vezes ainda é presente!

agrades disse...

Paisagens e pessoas que se atravessam nos nossos olhas e ficam marcadas na nossa memória.

Luisa disse...

O teu texto recordou-me Alenquer antiga em que as lavadeiras iam lavar ao rio e, mais tarde, nos lavadouros públicos. Se elas soubessem que apareceriam as máquinas, talvez sentissem raiva por ainda não as terem.

bettips disse...

Uma manhã reflectida na água. A solenidade do que pensas, desfias no tempo e (também) reflectes. Paisagens inesquecíveis.

Licínia Quitério disse...

O espanto de sentir que o passado veio ao nosso encontro e que afinal ele sempre coabita com o presente. Belo texto. Adoro o nome Soutelinho da Raia.

jawaa disse...

Bonita imagem de um Portugal que se foi perdendo.

mena maya disse...

Espantosa a tua habilidade de tecer tão belos textos, a partir de uma situação no cotidiano, que teria passado despercebida à maioria das pessoas.

Zambujal disse...

Belo texto!