Lâminas
A Tentação do Corte
Suponho
que haverá quem se recoste na cadeira do barbeiro e ali desdobre
vidas que serão de seguida refeitas de modo diferente pelo discurso
de outros, depois de estadia breve em ouvidos alheios. Correrão no
entanto alguns riscos, imagino, pois que a mão viril de quem agarra
a navalha poderá eventualmente segurar, também, a tentação de
cortar o mal pela raiz. Ou seja: a barba e a palavra. Dependerá da
barba e da palavra, claro. Sensibilidades à flor da pele, uma
embirração, uma inveja que se insinua, uma indignação que sobe ao
olhar de quem escuta (ossos do ofício), cansaço de mão ou de
ouvido, sabe-se lá que mais por adivinhar. Uma questão de fio: o da
navalha que se presume afiada, e o das palavras que se desenrolam
rápidas e aguçadas na ponta da língua do cliente, para que se não
perca o fio à meada. Enquanto os movimentos circulares do pincel e
do pensamento espalham espuma e tentação sobre a pele húmida onde
a navalha abre carreiros de intenções desconhecidas. Mas há que
ter contenção e salvaguardar a arte: colem-se então os sorrisos no
espelho defronte da cadeira, ao mesmo tempo que a mão, agora já sem
a navalha, absorve com toalha morna os restos de espuma.
O senhor que se segue...
O senhor que se segue...
M
15 de
maio de 2006
(A memória tem destas coisas.)
4 comentários:
Às vezes...deixas-me no "fio da navalha da memória", quando espreitas estas antiguidades e discorres sobre elas. Vi assim as milhentas vezes que espreitei os barbeiros antigos, em criança.
Quantas palavras afiadas como navalhavas se espelham do barbeiro para a rua!
Bela descrição, tim-tim por tim-tim.
Barba ou cabelo?
Uff, respirei de alívio! Ainda temi uma desgraça, tal o suspense da descrição:)))))
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