quinta-feira, março 03, 2016

8. M.



                       Lâminas

A Tentação do Corte

Suponho que haverá quem se recoste na cadeira do barbeiro e ali desdobre vidas que serão de seguida refeitas de modo diferente pelo discurso de outros, depois de estadia breve em ouvidos alheios. Correrão no entanto alguns riscos, imagino, pois que a mão viril de quem agarra a navalha poderá eventualmente segurar, também, a tentação de cortar o mal pela raiz. Ou seja: a barba e a palavra. Dependerá da barba e da palavra, claro. Sensibilidades à flor da pele, uma embirração, uma inveja que se insinua, uma indignação que sobe ao olhar de quem escuta (ossos do ofício), cansaço de mão ou de ouvido, sabe-se lá que mais por adivinhar. Uma questão de fio: o da navalha que se presume afiada, e o das palavras que se desenrolam rápidas e aguçadas na ponta da língua do cliente, para que se não perca o fio à meada. Enquanto os movimentos circulares do pincel e do pensamento espalham espuma e tentação sobre a pele húmida onde a navalha abre carreiros de intenções desconhecidas. Mas há que ter contenção e salvaguardar a arte: colem-se então os sorrisos no espelho defronte da cadeira, ao mesmo tempo que a mão, agora já sem a navalha, absorve com toalha morna os restos de espuma.
O senhor que se segue...

M

15 de maio de 2006

(A memória tem destas coisas.)

4 comentários:

bettips disse...

Às vezes...deixas-me no "fio da navalha da memória", quando espreitas estas antiguidades e discorres sobre elas. Vi assim as milhentas vezes que espreitei os barbeiros antigos, em criança.

Luisa disse...

Quantas palavras afiadas como navalhavas se espelham do barbeiro para a rua!

Licínia Quitério disse...

Bela descrição, tim-tim por tim-tim.
Barba ou cabelo?

Justine disse...

Uff, respirei de alívio! Ainda temi uma desgraça, tal o suspense da descrição:)))))