quinta-feira, novembro 08, 2018

7. M.

 
Quando eu era pequena os meus Pais tinham uma empregada que me contava histórias aterradoras. Uma delas era a de um ladrão que trepava as paredes com pé direito alto do prédio antigo onde vivíamos e entrava dentro de casa pela janela do meu quarto no terceiro andar. Claro que seria impossível alguém chegar até lá, a não ser com andaimes, mas eu não conseguia ter esse raciocínio e ficava apavorada. Assim, mal anoitecia, fechava rapidamente as portadas, e tremia de medo a imaginar o tal homem suspenso pelos braços, as mãos cravadas no parapeito, preparado para entrar. Chegada a hora de me deitar, enroscada em pensamentos assustadores, só conseguia adormecer depois de espreitar debaixo da cama para me certificar de que ninguém se tinha escondido ali. Espreito, não espreito, e se está aqui alguém... Ui, o medo quase me paralisava! Teria sido mais avisado se tivesse revelado aos meus Pais o que me afligia, mas nunca o fiz e eles também nunca se aperceberam da arte de contadora de histórias horríveis da empregada. O prédio existe ainda, enorme e de boa saúde, rondo-o às vezes, mas nunca vejo ninguém com aspecto de ladrão pendurado nele. Só durante as festas natalícias aparecem por lá vários sósias de Pai Natal insuflável com os sacos às costas carregados de presentes sonhados por meninos em cartas escritas pela fantasia. Passam dias e noites equilibrados nos ferros das varandas, plastificados a preceito, o debrum do gorro vermelho misturando-se com as barbas brancas, o cinto preto com fivela dourada envolvendo a barriga proeminente sob o casaco, sem que ninguém lhes abra as janelas e receba as encomendas. Momentos de desilusão, suponho, atenuados pelas descrições divertidas dos percalços encontrados nas suas viagens em trenós puxados por renas, entre a saída da Lapónia e a chegada ao destino. Talvez alguma criança nos oiça, costumam gostar de aventuras, comentaram entre si.
M

7 comentários:

Isabel disse...

Gostei imenso desta história.
E conseguias dormir bem?...

Anónimo disse...

Medos da infância. Quem os não teve? (Luisa)

Mónica disse...

gostei da história, menina lisboeta ;D havia assim umas modas de meter medos nas crianças, conheço bem esse pavor e ao mesmo tempo necessidade de confirmar se não estava ninguém (ou uma cobra) debaixo da cama. acho que a tua empregada devia ser também a minha ahhaahah quanto aos pais natais adorei a forma como os descreveste, acho a ideia dos pais natais engraçada mas deixaram-nos pendurados tanto tempo parece um desrespeito pela personagem

Anónimo disse...

Gosto da fotografia com uma luminosidade muito bem conseguida. Os prédios estão bem recuperados. É em Campo de Ourique?

Teresa

M. disse...

Isabel: Depois de adormecer, dormia.
Teresa: Não é Campo de Ourique, tirei a fotografia numa rua da Baixa mas não me lembro qual.

Justine disse...

Pergunto-me amiúde se existirá ainda alguma criança que acredite no pai natal, que é assim uma invenção/cópia que veio destronar o presépio e o menino jesus, parecida com a do halloween e o dia do bolinho - enfim outros tempos!

Mónica disse...

Justine:o m filho acreditou no pai natal até ir para a escola primária e foi uma vergonha para ele porque insistiu com os colegas que lá a casa ía mesmo o pai natal todos os anos, até havia fotografias dele ao colo do pai natal.. tadinho, havia sempre alguém encarregue se sair mascarar-se bater à porta tirar uma fotografia e sair rapidamente. nesse ano n houve pai natal claro