quarta-feira, março 03, 2021

5. M.

Cor, alegria, ironia, crítica, originalidade, criatividade nos temas e aplicação dos materiais usados, tudo isto sinto em grande parte das obras de Joana Vasconcelos. Levam-me a reflectir sobre a sociedade em geral e o mundo feminino em particular, as suas ocupações, limitações, desejos de libertação e mudança, fantasias, enganos, que novas prisões tomaram lugar na voragem das vidas. Que desperdícios versus benefícios? Que consumismos devoram as fomes do nosso século? Gosto dos nomes das peças, significativos, poéticos também. Como Coração Independente, construído com talheres de plástico, apresentado em três versões, três cores fortes que interpreto como estados de alma oscilando entre desespero, paixão e amor, correndo-se o risco de tudo ser descartável, até o amor. Marilyn é outra “personagem”, sedutora no alto das suas sandálias gigantescas feitas de panelas, os saltos a lembrar-me os pacotes de panelas empilhadas por tamanhos ganhas em rifas de feiras. Encantamentos domésticos do momento, ou talvez não, Cada um sonha como vive, diz o provérbio. A Marilyn associo o meu livro Cinderela com imagens de Walt Disney e o sapato perdido pelo sumiço da magia do baile real, reencontrado depois pelo príncipe sonhador o pé que à improvável dona pertencia. Talvez a felicidade tenha horas marcadas. Marilyn e Cinderela. A mulher dividida entre o quotidiano baço, porventura injusto e desajustado, e o deslumbramento. 

São-me familiares alguns dos materiais usados por Joana Vasconcelos. Na minha casa de infância tricotavam-se camisolas, desenhavam-se flores e pássaros que por artes mágicas pousavam em tecidos delicados e faziam-se rendas que debruavam naperons e toalhas de mesa muito belos. Mas não se cobriam sapos de Bordalo Pinheiro com rendas de croché nem nenhum se metamorfoseou em Príncipe. Terá possivelmente Joana Vasconcelos encontrado inspiração no conto de fadas A Princesa e o Sapo na versão mais conhecida dos dias de hoje contada pelos irmãos Grimm. Interessada pela diversidade de linguagens expressas através dos tempos, criou também ela uma linguagem própria renovando à sua maneira esse antigo diálogo silencioso entre o pensamento e a arte das mãos, tantas vezes pintado em telas de pintores e retratado nas personagens de livros. A vida não se perde, transforma-se. Talvez seja esta uma das mensagens que Joana Vasconcelos queira transmitir. Se é irreverente por nos provocar de forma original a reflexão sobre situações aparentemente imutáveis, aprecio o método de que se serve.

M

(Fotografia de um arraial do fim do ano lectivo no colégio dos meus netos)

4 comentários:

Licínia Quitério disse...

Gostei da exposição sobre as razões de gostar. Quase me convenceste.

Anónimo disse...

Por muito que se diga sobre as intenções da Joana Vasconcelos, continuo a "embirrar" com o seu estilo.
Luisa

Mónica disse...

estou com a Licinia, fui procurar informações sobre a peça Marilyn e tens toda a razão sobre as tuas observações. se calhar devia primeiro conhecer e perceber a peça e depois dar opinião. em geral assusta-me o kitch da JV, faz do kitch arte ou faz da arte kitch não sei e não me dou ao trabalho de dar atenção/compreender.
obrigada M!

Justine disse...

Creio que nunca JV teve uma recensão crítica tão positiva, tão compreensiva, tão profunda. Como prezo o teu critério estético, irei, logo que me apeteça, repensar o trabalho da "piquena" :-) :-) :-)