quarta-feira, abril 21, 2021

8. Mónica

Andava pela cidade em trabalho, ali para os lados da Madragoa, quando tomei consciência que era a primeira vez que andava por ali, pela famosa Madragoa, cenário de filmes, fados, referência em tantas coisas ditas castiças de Lisboa.  Se por um lado Lisboa é para mim, ainda e ainda bem, um poço sem fundo e sem luz de lugares e histórias para descobrir, por outro lado nunca tive razão para andar por aqui, não há nada notável, nenhum lugar público, instituição, comércio, serviço, espaço verde, estacionamento, usando a linguagem do relatório de trabalho, é um bairro de edifícios de habitação colectiva, em banda, de pequena cércea e de construção anterior a 1951 (data charneira do antes e o depois do RGEU ou seja em palavras cruas sem instalação sanitária de construção de raiz, obrigatória hoje, uma porcaria, um água-vai há 70 anos), com ruas estreitas de sentido único, servido de transportes públicos, o autocarro, na periferia do bairro, ou ainda por outras palavras, um lugarejo aparentemente sem importância mas com interesse antropológico-sociológico-turístico e very typical. Estava nestas considerações de pré-preenchimento mental do relatório quando vejo este altar, é o que me parece, será isto o very typical? Homenagem a um rapaz de telemóvel na mão, terá morrido, é um cantor de sucesso? Um armário com um rolo de papel de cozinha, velas e a figura de Nossa Senhora?

Lembrei-me do meu filho quando tinha 5 anos, ao descermos a Mouraria e chegando ao Rossio diz: chegamos a Lisboa! Foi o que pensei quando descendo a Madragoa cheguei a Santos: ufa cheguei a Lisboa sã e salva e muito curiosa destas gentes e lugares estranhos. Hei de lá voltar em passeio.

Mónica

3 comentários:

Justine disse...

Um relatório sufocante, elucidativo, poético na violência que destapa!
Um texto que me despertou a curiosidade, a vontade de andar por esse bairro mas com olhos de ver, não apenas como lugar de passagem!
E as crianças são sábias, Mónica.

M. disse...

Apreciei o texto que tão bem transparece o teu olhar crítico e sabedor destas matérias.

bettips disse...

Não tenho palavras para descrever a Mouraria e o que me provoca: da "moirama" a outras lembranças, very typical but not very funny.
Apreciei muito a tua descrição.