terça-feira, maio 04, 2010
Hoje, ao receber a proposta de palavra da Despertando para a próxima semana, lembrei-me disto (depois perceberão porquê)...
A Toalha Vaidosa (Foto de S.)
A Coroa do Rei
No país das linhas rectas paralelas havia um rei que tinha uma coroa de prata lisa e brilhante como um lago onde não toca uma aragem. Sempre que saía, colocava a coroa na cabeça e olhava-se ao espelho para ver se estava elegante. Depois descia vagarosamente a escadaria de pedra do palácio, com o corpo muito direito para não deixar cair a coroa. O rei gostava de passear de carruagem pelo seu reino, por isso exigia que ela estivesse à sua espera, à porta do palácio, com o cocheiro e o lacaio de libré que, com uma grande vénia, lhe abria a porta. Baixava então ligeiramente a cabeça para entrar no coche, segurando a coroa com a mão enluvada, e sentava-se à janela com um sorriso de rei nos lábios.
Naquela cidade, assim como no resto do país, e porque o rei tinha proibido todas as curvas, as ruas eram paralelas e em linha recta, terminando abruptamente sob um arco aberto para um descampado. Como se pode imaginar, esta arquitectura urbanística provocava enormes confusões no trânsito. Os peões andavam constantemente a direito e, quando precisavam de mudar de direcção, faziam-no em ângulo recto, o que era uma complicação. E uma perda de tempo, sempre que queriam entrar ou sair de suas casas, das casas dos amigos, de alguma loja, ou dos autocarros. Mas o pior de tudo era quando iam cheios de pressa e se enganavam no caminho: não podiam dar rapidamente meia volta e virar para trás, como toda a gente faz em qualquer parte do mundo. Ou quando alguém mais distraído, depois de todo o esforço dispendido nos ângulos rectos, tocava à campainha de uma casa de que não conhecia o dono. Quem é?, perguntavam do andar lá de cima. É o Felismino. O senhor Doutor Aloísio está?, respondiam cá de baixo. Doutor?! Não mora aqui nenhum doutor. Deve estar enganado, esganiçava-se a voz da empregada. Ah, desculpe. Desfeita a confusão, e não sei se menos atarantado, voltava o transeunte ao trilho certo, olhando o polícia de giro pelo canto do olho. Impõe-se-me aqui esclarecer os leitores mais atentos: os polícias podiam circular à vontade apenas em serviço, por razões de agilidade de movimentos na sua função de guardiães da ordem. Fora disso, obedeciam às mesmas regras dos outros cidadãos.
Com os carros o rebuliço era ainda maior, pois os condutores, quer se enganassem quer não, tinham sempre que ir até ao fim da rua, transpor o arco, dar a volta na parte de fora, nos campos sem caminhos marcados (propositadamente pensados para isso), e regressar de novo ao interior da cidade. Não era autorizada qualquer manobra em marcha-atrás, pois para além do transtorno que poderiam causar ao trânsito, nem todos os automobilistas tinham mão firme no volante. Nem campo de visão perfeito para a retaguarda que lhes assegurasse recuar exactamente a direito por cima dos riscos traçados no chão.
Mas o rei não se importava nada com a agitação, pois achava que a cidade ficava linda com todas aquelas linhas ordenadas no pavimento. Comprazia-se a admirar a estética da sua obra e espreitava para fora da janela da carruagem, respondendo com acenos demorados ao gesto amável de algum dos seus súbditos. Mas um dia, ao pôr a cabeça de fora para apreciar melhor, e à distância, a vista de todas aquelas linhas perfeitamente paralelas, caiu-lhe a coroa. Foi então que uma criança que caminhava com um pé à frente do outro sobre uma das linhas marcadas no chão desatou a rir e disse muito alto: A coroa do rei está cheia de caminhos!
M
(Fotografia e texto publicados no Fotoescrita, em fins de Junho de 2005)
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
5 comentários:
Que giro, essa dos polícias de giro... Uma imaginação, uma brincadeira que me recorda alguém, um conto de criança com alma dentro.
A fotografia? Repara-se que não há rectas "na coroa" ... e todos - ou muitos - se encontram, se quiserem mesmo.
Um beijinho M.
Uma imaginação fértil, um saber contar e manter o leitor preso até ao desfecho inesperado. Uma história para pequenos e cescidos. Imagina assim esta história ilustrada em folhas soltas, ordenadas e entregues aos meninos. No meio deles, alguém leria o texto correspondente a cada uma das folhas desenhadas. Como um filme a passar, imagem fixa e voz off.
Vitória, vitória, acabou-se a história.
Vês o que fizeste? Já brinquei aos contadores de histórias.
Obrigada. Beijinho.
Bonita fotografia e texto a condizer, parecendo inspirado no conto “O Fato Novo do Imperador” de Christian Andersen, o nosso Rei Vai Nu.
Várias interpretações: as aparências iludem, quem se quer bem sempre se encontra, é proibido proibir, a verdade incomoda, e outras mais.
Obrigada pela partilha.
Um abraço
O que me ocorreu dizer tem tudo a ver com o que a Jawaa se antecipou a escrever.
Uma versão do Rei vai Nu, com uma intensidade que ultrapassa a mera história infantil.
E da coroa saíram-lhe caminhos bem curvos!!
Uma excelente estória com moral dentro, ou dizendo de modo mais literário, uma metáfora fortíssima sobre os caminhos da vida.
Muito bom, M.
Enviar um comentário