quinta-feira, outubro 24, 2013

6. LICÍNIA

A ler o artigo de Alexandra Lucas Coelho, no Público de hoje, e a sua descrição de um tal teatrinho perdido no caminho para Death Valley, em cenários que atravessam a nossa memória de filmes de Antonioni, a ler este excelente artigo, dizia, e o pensamento a fugir-me para outro cenário retro em que entrei recentemente.
A propósito de colher um papelinho a que se chama vulgarmente atestado médico, acompanhei uma amiga a um prédio bonitinho, fim de século dezanove, rés-do-chão e primeiro andar, porta verde só encostada, dois degraus de pedra bem gasta. Empurra-se a porta e ficamos numa salinha chamada de espera, com um terno de sofás de madeira e napa, uma mesinha para revistas, tudo muito retro de baixo preço. Nas paredes, quadros com fotos da vila, num tom geral azulado que o tempo lhes conferiu. Um deles, tendo como moldura uma fita adesiva verde escura, pendente do prego na parede por um cordão sedoso, não consegue horizontalidade e espera um ligeiro toque que o endireite. Na mesa, o Borda d' Água, o jornal da região, umas revistas de um laboratório de análises, um lápis e um bloco de apontamentos por estrear. Ninguém na sala, até que, num arrastar de pantufas pelo corredor, chega uma velha senhora que diz "o senhor doutor já vem". Informação dada, senta-se e começa, em silêncio, a fazer o naperon de crochet que tira do bolso do avental. Esperamos uns longos minutos até que o senhor doutor aparece, diz "boa-tarde, venha", e volta para o interior da casa, enquanto a senhora de crochet e pantufas ordena "ainda temos de ir a casa da tia Mila". O senhor doutor responde um "sim, mãe" e ainda o oiço dizer para a minha amiga "venha buscar para a semana".
Apenas dois degraus e o filme desenrola-se e rebobina-se, oitenta anos para trás, oitenta anos para a frente. Em Death Valley ou em Aboboreira do Mar, as aparições do passado não param de nos surpreender. 

Licínia, 20 de Outubro de 2013

5 comentários:

Rocha de Sousa disse...


Claro que um jornal de parede pode
não ter imagens, pode ser um texto
assim, talvez urgente.

Justine disse...

Quero ler muitos jornais de parede como este, em várias paredes, para ir viajando até ao passado...sabe tão bem!

bettips disse...

Uma imensa ternura por estes médicos de proximidade. Tantas vezes precisamos apenas de um conselho e uma "aspirina".
A tua descrição é fabulosamente realista, como uma notícia: a humanidade é apenas... humana, na fome, na doença, na alegria ou na tristeza.

M. disse...

Ah quem dera fossemos sempre tratados desta maneira quando estamos doentes. Quem dera os consultórios privilegiassem esta humanidade de prolongamento de vida em vez da estética fria, desconfortável e anónima das salas de espera.
Um texto lindíssimo, Licínia. Comovente.

agrades disse...

O Dr. Atestados e su madrecita revisitados. Um mimo!