domingo, outubro 08, 2006

O prazer de ler

«Ficou muito tempo deitado de costas a fumar, a olhar para a negrura do telhado cavernoso. Os cabos ressonavam em contraponto. Estava exausto, mas não tinha sono. A ferida latejava desconfortavelmente, com batimentos precisos e fortes. O que quer que estivesse ali dentro era aguçado e estava junto à superfície, e ele sentia vontade de lá tocar com a ponta do dedo. O cansaço tornava-o vulnerável aos pensamentos que menos queria. Imaginava o menino francês a dormir e pensava na indiferença com que os homens conseguiam bombardear uma paisagem. Ou despejar as suas bombas sobre uma casa, onde toda a gente dormia, ao lado de um linha de comboio, sem saberem nem quererem saber quem é que lá estava. Era um processo industrial. Tinha visto as unidades da Artilharia Real britânica em acção, grupos coesos que trabalhavam sem fim, orgulhosos da velocidade com que conseguiam fazer uma trincheira, e orgulhosos da sua disciplina, da sua preparação e do seu trabalho de equipa. Nunca precisavam de ver o resultado final − um rapaz desaparecido. Desaparecido. Ao formular mentalmente a palavra cedeu ao sono, mas apenas por segundos. Voltou a ver-se deitado na cama, de costas, a olhar para a escuridão da sua cela. Sentia que estava lá de novo. Sentia o cheiro do chão de cimento, da urina no balde e da tinta brilhante das paredes e ouvia os homens das outras celas a ressonarem. Três anos e meio de noites assim, sem dormir, pensando num outro rapaz desaparecido, numa outra vida desaparecida que em tempos fora a sua, à espera do amanhecer, do toque para acordar e de mais um dia perdido. Não sabia como conseguia sobreviver à estupidez diária. À estupidez e à claustrofobia. A mão a apertar-lhe o pescoço. Estar ali, abrigado num celeiro, com um exército em tropel, onde a presença da perna de uma criança numa árvore era algo que as pessoas conseguiam ignorar, numa situação em que todo um país, toda uma civilização estava prestes a desmoronar-se, era melhor do que estar numa cela, numa cama estreita, sob a luz fraca de uma lâmpada, sem esperar nada. Também ali havia vales com árvores, regatos, choupos iluminados pelo sol, que ninguém podia tirar-lhe a menos que o matassem. E também havia a esperança. Eu espero por ti. Volta. Havia uma hipótese, só uma hipótese, de voltar. Tinha a última carta dela no bolso com a sua nova morada. Era por isso que tinha de sobreviver e usar toda a sua astúcia para se manter afastado das estradas principais, onde os bombardeiros os esperavam, voando em círculos como aves de rapina.»


Expiação, Ian McEwan

5 comentários:

JPD disse...

Ainda não li a Expiação.
Hei-de fazê-lo pela simples razão de achar esse autor muito bom.
Gosto imenso de lê-lo.

Anónimo disse...

E que bem escreve este autor.

hfm disse...

Gostei muito de ler.

por um fio disse...

Adorei a re-leitura que fiz deste pedaço de texto!

por um fio disse...

Linkei-me a este texto em http://por-um-fio-invisivel.blogspot.com/,
porque me pareceu com afinidades ...
Boa noite!