quinta-feira, novembro 03, 2022

6. M.


São tantos os anos que passaram por dentro e por fora de mim que a minha memória está como a fotografia da prateleira do armário com portas envidraçadas que tenho em casa. Guardamos ambos uma variedade imensa de objectos antigos associados a histórias ligadas às pessoas da família. Uma miscelânea de tempos, como se vê. O comboio, por exemplo, foi um brinquedo oferecido ao meu Pai em criança, talvez na primeira década de 1900. As miniaturas comprei-as eu, a recordar com prazer os dois transportes públicos que sempre utilizei nas minhas lides diárias. Um gosto especial pela lembrança do autocarro de dois andares com a sua escada estreita que me levava à parte de cima. Sentava-me de preferência no banco da frente junto do vidro, vistas mais abrangentes, o tejadilho roçando os ramos das árvores de certas ruas. Abandonaram os autocarros o verde em favor do amarelo, a juntar às inovações tecnológicas para condução mais eficiente e conforto dos passageiros. O interior então sóbrio deu lugar ao predomínio da cor. Saltam à vista os estofos coloridos dos bancos de passageiros, as máquinas amarelas de validação de passes à entrada da porta, os botões para assinalar a paragem pretendida confirmada em faixa luminosa visível junto do tecto. Encolheram em altura, esticaram no comprimento, nalguns foi acrescentado um segundo módulo, ligados ambos por uma peça articulada que me faz pensar em acordeões e bailes populares. Imprescindível é ela ao motorista nas manobras das curvas e contracurvas do trajecto, numa espécie de dança sobre rodas. Presumo que estarão satisfeitos com as inovações recebidas, bem o anunciam na frase Eu ando a todo o gás tatuada no exterior. Mas eu acho que estão iludidos, o trânsito intenso atrapalha o andamento. O deles e o nosso.

M

6 comentários:

Mónica disse...

Gostei do relato e da analogia do fole com a sanfona

Anónimo disse...

Uma bela colecção que guardas carinhosamente. Quanto aos novos autocarros nem sei que diga. Para mim são perigosos. Troquei-os pelo táxi.
Luisa

bettips disse...

Um mimo, essas recordações antigas e lampejos delas, modernas.
Quanto à descrição dos autocarros é perfeita, estou a vê-los, mas se puder não entro: os condutores na sua maior parte são bruscos e as pessoas não o são menos.

mena maya disse...

Quando vamos na zona do fole, levamos cada abanão! Em Berlim ainda há os de dois andares, também gosto de me sentar no 1° andar no banco da frente.

Justine disse...

Aqui nos dás a ler um texto belo, simultaneamente poético e irónico, bem organizado e didáctico sobre os transportes públicos e a sua história. Muito bom

Anónimo disse...

Muito gira a coleção e a foto.

O texto poderia figurar no museu da carris. Uma breve história dos transportes em Lisboa.

Teresa