Janeiro de 1944, Goba, Moçambique. Como já disse nas duas semanas anteriores, nada recordo dos anos em África. Mas, pelo que sempre ouvi contar na família, e pelo que as fotografias (sem sorrisos congelados) dessa época longínqua mostram, a nossa vida era solta, ao ar livre, alegre. Estou sempre a rir naturalmente, com ar maroto, ao colo dos meus pais, tios e primos mais velhos, a brincar sozinha, com o meu irmão (dezasseis meses mais novo do que eu) ou com o Caju. Uma vez até me encontraram a comer a comida de cão do prato dele. Noutra ocasião recusei-me a ficar sentada no bacio à espera da chegada “com pompa e circunstância” do presente que a minha barriga me queria oferecer (ou à minha mãe?...) e preferi recebê-lo atrás da porta do quarto, saindo de lá com a mão estendida… Ao meu irmão aconteceu enfiar a sua curiosidade num arbusto de piripiri, de onde foi resgatado como se imagina, tão ou mais vermelho do que as malaguetas e a chorar desalmadamente. Penso, portanto, que com tantas aventuras e liberdade de movimentos, terei sentido uma enorme diferença quando viemos morar no terceiro andar da casa de Lisboa. Quem sabe tenha sido essa a razão de eu ter apagado da memória os anos em África e ter encontrado um substituto da minha anterior vida ao ar livre nos passeios que fazia com a Tia Chanel. O meu irmão e eu, cada um na sua trotineta, subíamos com ela a Tapada da Ajuda vezes sem conta, nenhum cansaço, o prazer pleno do encontro com a Natureza. De outros episódios pacíficos, recordo o gosto de estarmos no quarto da nossa avó, deitados na chaise-longue, enroscados um de cada lado da Tia Chanel, a ouvi-la ler-nos um livro da sua infância. À parte isso, existiam também as brigas entre nós os dois. Bem me lembro das corridas à volta da mesa da sala de jantar, a querermos bater um no outro, a minha mãe a defendê-lo porque a mim, sendo a mais velha, me era atribuída maior responsabilidade na origem e desenrolar do conflito, o pai a defender-me, eu a sentir-me injustiçada. Não terá acontecido sempre assim, mas entre irmãos pode haver ciúmes e há que ter cuidado no modo de agir com os filhos. Existiam igualmente cumplicidades entre nós os dois. O que nos divertíamos quando éramos chamados para almoçar ou jantar e nos apresentávamos despenteados e nos mandavam pentear! Lá íamos de volta à casa de banho, ríamos e regressávamos na mesma, provocadores, de novo para trás, até obedecermos. Que remédio! E mais histórias haveria a contar. Enfim, fomos crescendo nas nossas maneiras de ser diferentes um do outro, com algumas embirrações pelo meio a destoar das empatias, e por cá andamos ainda.
M
Nota: Não mostro a fotografia completa porque não gosto de publicar fotografias sem autorização dos retratados (a mim pedi autorização. A pequenita que fui disse-me ao ouvido que não havia problema). Mas uma coisa vos garanto, também o meu irmão está a rir.
4 comentários:
Um encanto de histórias e historietas como há sempre entre irmãos. Não mostras o teu irmão mas eu já estive com ele numa exposição. Uma pessoa encantadora e um grande artista
Luisa
Uma história bem contada, divertida, com algum sarcasmo e também uma pontinha de escatologia, e que nos dá um retrato encantador da vossa infância.
O que mais gosto na fotografia, para além do teu sorriso, claro, é o teu majestoso laçarote!!
Admiro a tua imaginação para elaborar um texto. uma história.
Teresa
Que doçura de criança, veem-se os pézinhos de outra criança a jeito de levar umas cócegas da menina, será?
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