sábado, agosto 12, 2006

"Laços de Família", de Clarice Lispector

«Quando o homem atingiu a colina mais alta, os sinos tocavam na cidade em baixo. Viam-se apenas os tectos irregulares das casas. Perto dele estava a única árvore da chapada. O homem estava de pé com um saco pesado na mão.
Olhou para baixo com olhos míopes. Os católicos entravam devagar e miúdos na igreja, e ele procurava ouvir as vozes esparsas das crianças espalhadas na praça. Mas apesar da limpidez da manhã os sons mal alcançavam o planalto. Via também o rio que de cima parecia imóvel, e ele pensou: é domingo. Viu ao longe a a montanha mais alta com as escarpas secas. Não fazia frio mas ele ajeitou o paletó agasalhando-se melhor. Afinal pousou com cuidado o saco no chão. Tirou os óculos talvez para respirar melhor porque, com os óculos na mão, respirou muito fundo. A claridade batia nas lentes que enviaram sinais agudos. Sem os óculos, seus olhos piscavam claros, quase jovens, infamiliares. Pôs de novo os óculos, tornou-se um senhor de meia-‑idade e pegou de novo no saco: pesava como se fosse de pedra, pensou. Forçou a vista para perceber a correnteza do rio, inclinou a cabeça para ouvir algum ruído: o rio estava parado e apenas o som mais duro de uma voz atingiu por um instante a altura − sim, ele estava bem só. O ar fresco era inóspito, ele que morara numa cidade mais quente. A única árvore da chapada balançava os ramos. Ele olhou-a. Ganhava tempo. Até que achou que não havia por que esperar mais.»


O Crime do Professor de Matemática, em Laços de Família, Clarice Lispector. Relógio d’Água


Foto de M

1 comentário:

Anónimo disse...

Não conheço esta autora, mas pelo excerto aqui apresentado parece-me ser a escrita de alguém que fluí e sabe contar uma história.
Um abraço
Teresa David