quinta-feira, agosto 10, 2006

"Uma poalha azulada..."














«Uma poalha azulada desprende-se das estrelas que se apagam, entorna-se pelo céu, vem descendo lentamente. Lentamente, a noite vai andando para o outro lado do mundo. Um caminho eterno.
Na sombra disforme da terra, mal se divisavam as casinhas da Fonte Velha. Vultos indecisos no escuro caminhavam pela estrada que passa entre os casebres. Um rumor de vida atravessava as paredes e vinha confundir-se com os passos rudes − botas cardadas − dos homens que largavam para o trabalho.
Alguém saiu de uma das casinhas e parou no meio da estrada. Espreguiçou-se, deixando sair dos gestos, lentos e dolorosos pedaços de sono. Lá do último casebre, veio uma voz:

− Eh, Valmansinho!
Valmansinho sacudiu o corpo, estremecendo, como um cão encharcado. Avançou de vez.
− Lá vou, Chico Charrua!
Soprava do nascente uma aragem fina. E eram dedos claros afastando véus, lá por detrás dos cerros envoltos de penumbra. Do lado da vila, galos rasgavam a madrugada de notas coloridas. As folhas dos eucaliptos, pela beira da estrada, arrepiavam-se na aragem vagarosa. Tudo estremecia, ensonado.
A mulher de Valmansinho assomou à porta. Um lenço escuro tapava-lhe o rosto esguio, e o busto magro, deitado para trás, fazia sobressair mais o ventre volumoso e empinado. Atravessou a rua com a lata. Despejou-a, de leve, no chão negro e solto.»

Cerromaior, Manuel da Fonseca. Caminho

Foto de M

2 comentários:

Anónimo disse...

Sensacional mescla de luz e cor!

Pató

Teresa David disse...

Tive o previlegio de ser amiga até á morte dele do Manuel da Fonseca, visita de minha casa, grande amigo do falecido pai do meu filho tb escritor de nome Virgilio Martinho, e com quem beberriquei vinho tinto, mordisquei queijo com pão alentejano, e tudo á bebida, comida e conversa como ele dizia e tanto gostava.
Recordo mtas noites de saudavel convivio, mas a vida continua, portanto isto é meramente a evocação de uma parte da minha vida mto rica de convívio humano.
Um abraço
Teresa David