quinta-feira, outubro 17, 2013

8. M.

Mal olhei para esta bela fotografia da Bettips lembrei-me do guarda-noturno que calcorreava grande parte das ruas do bairro em que vivi entre os cinco e os vinte e sete anos.
Homenzarrão apertado numa farda escura, aos tropeções passeio abaixo passeio acima, o molho de chaves enormes a tilintar no cinto de cabedal em volta da barriga proeminente, lá vinha ele ao encontro dos raros notívagos que o chamavam batendo fortemente as palmas das mãos para que lhes abrisse a porta da rua. Figura estremunhada a dele, a surgir nem eu sabia de onde, de que rua mal iluminada, quase de repente. Um pouco assustadora, confesso, e ao mesmo tempo provocando em mim uma certa compaixão por o imaginar muito só na sua vigília urbana.
Nas ruas havia um ou outro carro estacionado, os autocarros e os elétricos deslizavam sem atropelos, na sua maioria os residentes recolhiam cedo, em passo lento, muito antes de o guarda-noturno entrar ao serviço. Agora o movimento é outro, o ritmo dos dias acelerado, a vida enrolada em horários tardios, os relógios em competição com o tempo.
No entrelaçado de arquiteturas diversas que compõem o bairro continuam a existir prédios antigos, e aquele onde o meu Pai nasceu e morei com a minha família durante tantos anos marca ainda presença com as suas paredes de pé direito ancestral e a traça original das suas janelas. Ah e a porta de madeira maciça altíssima que me fazia sentir um pigmeu e que custava tanto a empurrar mudou de castanho para verde mas continua firme no passeio. Não faço ideia se range, se geme de cansaço, se ainda ri o riso dos meninos. Gostaria de poder voltar a tocar-lhe, espreitar a entrada ampla, as seis caixas de correio alinhadas na parede do lado esquerdo, subir dois a dois os degraus da escadaria de madeira até ao terceiro andar, cruzar-me pelo caminho com a memória de um ou outro vizinho, tocar a campainha ou meter a chave à porta – tão frágil ela era, o postigo retangular a lembrar um remendo -, entrar dentro de casa e encontrar-me comigo em cada divisão. Desejo perigoso e solitário, bem sei. Tenho a certeza que sairia de lá com uma sensação mista de familiaridade e de estranheza, de algo agradável e igualmente doloroso.

M

5 comentários:

Licínia Quitério disse...

É um regresso desejado mas temido. Mesmo que o passado regresse terá outras formas, outras cores, outras chaves até. Um texto melancólico e terno.

bettips disse...

Uma beleza de descrição: já não me lembrava da sombra alongada e tão confiante do guarda-nocturno!
Porque não passas lá e fotografas, a porta, a porta dos teus passos menineiros? Como "reflexão caseira".
O resto... percebemos que ficou dentro de ti, tal como nos mostras quando levantas o véu, conhecendo-te nas escritas variadas há já alguns anos. Algo de riso e algo de chôro.
Mas ter consciência das coisas é andar permanentemente assombrada, M.

Luisa disse...

Como a M também tive na rua um guarda-nocturno e como ela tenho um certo medo de tentar ir ao passado.

Justine disse...

Querias então uma máquina do tempo, minha amiga:))))))))))
O teu texto é um magnífico retrato de um tempo que desapareceu, mas que se mantém intacto na nossa memória, com ou sem máquina do tempo!

Benó disse...

As chaves abriram as memórias do tempo. Também recordo o guarda noturno: muito gordo com um grande cinturão e tinha sempre uma palavra para quem chegava fora de horas.