Mal
olhei para esta bela fotografia da Bettips lembrei-me do
guarda-noturno que calcorreava grande parte das ruas do bairro em que
vivi entre os cinco e os vinte e sete anos.
Homenzarrão apertado numa farda escura, aos tropeções passeio abaixo passeio acima, o molho de chaves enormes a tilintar no cinto de cabedal em volta da barriga proeminente, lá vinha ele ao encontro dos raros notívagos que o chamavam batendo fortemente as palmas das mãos para que lhes abrisse a porta da rua. Figura estremunhada a dele, a surgir nem eu sabia de onde, de que rua mal iluminada, quase de repente. Um pouco assustadora, confesso, e ao mesmo tempo provocando em mim uma certa compaixão por o imaginar muito só na sua vigília urbana.
Nas ruas havia um ou outro carro estacionado, os autocarros e os elétricos deslizavam sem atropelos, na sua maioria os residentes recolhiam cedo, em passo lento, muito antes de o guarda-noturno entrar ao serviço. Agora o movimento é outro, o ritmo dos dias acelerado, a vida enrolada em horários tardios, os relógios em competição com o tempo.
No entrelaçado de arquiteturas diversas que compõem o bairro continuam a existir prédios antigos, e aquele onde o meu Pai nasceu e morei com a minha família durante tantos anos marca ainda presença com as suas paredes de pé direito ancestral e a traça original das suas janelas. Ah e a porta de madeira maciça altíssima que me fazia sentir um pigmeu e que custava tanto a empurrar mudou de castanho para verde mas continua firme no passeio. Não faço ideia se range, se geme de cansaço, se ainda ri o riso dos meninos. Gostaria de poder voltar a tocar-lhe, espreitar a entrada ampla, as seis caixas de correio alinhadas na parede do lado esquerdo, subir dois a dois os degraus da escadaria de madeira até ao terceiro andar, cruzar-me pelo caminho com a memória de um ou outro vizinho, tocar a campainha ou meter a chave à porta – tão frágil ela era, o postigo retangular a lembrar um remendo -, entrar dentro de casa e encontrar-me comigo em cada divisão. Desejo perigoso e solitário, bem sei. Tenho a certeza que sairia de lá com uma sensação mista de familiaridade e de estranheza, de algo agradável e igualmente doloroso.
M
Homenzarrão apertado numa farda escura, aos tropeções passeio abaixo passeio acima, o molho de chaves enormes a tilintar no cinto de cabedal em volta da barriga proeminente, lá vinha ele ao encontro dos raros notívagos que o chamavam batendo fortemente as palmas das mãos para que lhes abrisse a porta da rua. Figura estremunhada a dele, a surgir nem eu sabia de onde, de que rua mal iluminada, quase de repente. Um pouco assustadora, confesso, e ao mesmo tempo provocando em mim uma certa compaixão por o imaginar muito só na sua vigília urbana.
Nas ruas havia um ou outro carro estacionado, os autocarros e os elétricos deslizavam sem atropelos, na sua maioria os residentes recolhiam cedo, em passo lento, muito antes de o guarda-noturno entrar ao serviço. Agora o movimento é outro, o ritmo dos dias acelerado, a vida enrolada em horários tardios, os relógios em competição com o tempo.
No entrelaçado de arquiteturas diversas que compõem o bairro continuam a existir prédios antigos, e aquele onde o meu Pai nasceu e morei com a minha família durante tantos anos marca ainda presença com as suas paredes de pé direito ancestral e a traça original das suas janelas. Ah e a porta de madeira maciça altíssima que me fazia sentir um pigmeu e que custava tanto a empurrar mudou de castanho para verde mas continua firme no passeio. Não faço ideia se range, se geme de cansaço, se ainda ri o riso dos meninos. Gostaria de poder voltar a tocar-lhe, espreitar a entrada ampla, as seis caixas de correio alinhadas na parede do lado esquerdo, subir dois a dois os degraus da escadaria de madeira até ao terceiro andar, cruzar-me pelo caminho com a memória de um ou outro vizinho, tocar a campainha ou meter a chave à porta – tão frágil ela era, o postigo retangular a lembrar um remendo -, entrar dentro de casa e encontrar-me comigo em cada divisão. Desejo perigoso e solitário, bem sei. Tenho a certeza que sairia de lá com uma sensação mista de familiaridade e de estranheza, de algo agradável e igualmente doloroso.
M
5 comentários:
É um regresso desejado mas temido. Mesmo que o passado regresse terá outras formas, outras cores, outras chaves até. Um texto melancólico e terno.
Uma beleza de descrição: já não me lembrava da sombra alongada e tão confiante do guarda-nocturno!
Porque não passas lá e fotografas, a porta, a porta dos teus passos menineiros? Como "reflexão caseira".
O resto... percebemos que ficou dentro de ti, tal como nos mostras quando levantas o véu, conhecendo-te nas escritas variadas há já alguns anos. Algo de riso e algo de chôro.
Mas ter consciência das coisas é andar permanentemente assombrada, M.
Como a M também tive na rua um guarda-nocturno e como ela tenho um certo medo de tentar ir ao passado.
Querias então uma máquina do tempo, minha amiga:))))))))))
O teu texto é um magnífico retrato de um tempo que desapareceu, mas que se mantém intacto na nossa memória, com ou sem máquina do tempo!
As chaves abriram as memórias do tempo. Também recordo o guarda noturno: muito gordo com um grande cinturão e tinha sempre uma palavra para quem chegava fora de horas.
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