quinta-feira, dezembro 08, 2016

8. M.



Pouco passava do meio dia quando deixei Santiago de Compostela a caminho de casa. Já tinha visitado algumas partes da cidade mas faltava-me espreitar uns certos recantos assinalados na agenda da viagem. Foi então que o vi, empoleirado no alto da parede. Lá estava ele, com o elegante ferro cravado no corpo a marcar a passagem do tempo: 9 horas e 35 minutos, segundo a leitura de um amigo mais entendido nestas coisas do que eu. Nada de pressas, ainda a manhã começava a adaptar-se à luz e o ambiente de séculos convidava-me a permanecer naquele claustro até ao limite possível concedido pelo guia galego que acompanhava o grupo. Esta mania de o sol ditar a nossa vida contraria-me, restringe-me os passos, atormenta o tempo que me pertence. A mim e a outros, talvez por isso há quem fique para trás a provocar horas e avisos. Seja como for, parece-me que esta coisa da sombra na pedra nos dá a sensação de que a vida se demora naquele jogo de sombras e luz. Tão diferente dos mostradores de relógios com ponteiros a rodar em conversas desencontradas de horas, minutos e segundos, dentro de caixas fechadas sem escapatória possível, à prova de água, à prova de choques, à prova de publicidade. Tão diferente também dos outros relógios onde se desdobram algarismos a um ritmo de presença e fuga diante dos nossos olhos. Apesar da inevitável interferência solar nas nossas existências, é bem mais bonito este rectângulo de pedra ao ar livre onde poisa o canto dos pássaros e escorrem gotas de água embaladas pelo vento. No entanto, para lá deste meu fervor idílico, imagino que talvez este tipo de relógio traga problemas a algumas pessoas: quando o sol se esconde e leva consigo os sinais de orientação, há quem possa ficar desatinado sem saber que rumo tomar. No caso dos nossos antepassados, resolveriam esse contratempo usando clepsidras para medir o tempo durante a noite. Quem as pudesse pagar, claro, a maioria das pessoas seria obrigada a contentar-se com a informação dada pelos sinos das igrejas.
M

4 comentários:

Isabel disse...

Muito interessante.
Antigamente, as pessoas também não estavam tão obcecadas pelo "poder" do relógio.

bettips disse...

Um discorer encantatório sobre o tempo fugaz. Mas acho, sim, o tempo medido pelos relógios de sol menos prepotente.

Licínia Quitério disse...

Bela caminhada sobre a medida do tempo. Conheci quem tinha fascínio pelos relógios de sol e chegou a construir um.

Justine disse...

O tempo que nos escraviza...
Os nossos antepassados, nesse aspecto, eram mais livres: levantavam-se com o sol, deitavam-se com ele - para quê relógios?