quinta-feira, novembro 11, 2021

6. M.

Sonoridades

Orelha-ninho, quase invisível por detrás do cabelo, de vez em quando espreita, discreta e atenta, como convém a um órgão responsável pela captação dos sons.

Rejeito falar agora de sons desagradáveis, de frases soltas carregadas de ódios que pairam nas bocas das pessoas, nas ruas, nas televisões, nas rádios. Nada disso me leva à beleza das coisas. Prefiro dar atenção ao gorjeio do pássaro que me acorda pela manhã, nem sei onde está, talvez nalguma das poucas árvores das redondezas. Não precisa de palavras, basta-me o seu canto a anunciar-me a hora de levantar. As palavras aparecem amiúde vindas de outros lados, nos timbres das vozes de quem as diz: Bom dia Mãe! O telefone é generoso, toca para unir ouvidos e pensamentos na distância. A proximidade física chegará noutro momento: Avozinha. Delicioso ser chamada assim, com a voz da ternura. Os meus ouvidos sorriem, sinto dentro de mim o aconchego das coisas simples nos dias que se vão abrindo oferecendo-me o seu tempo. Existe espaço para revisitar hoje Mahler na Sinfonia nº 2. Não é o mesmo que ouvi-lo no CCB ou na Gulbenkian, aqui o prazer é solitário, não devo aumentar o som até aos limites máximos, a minha instalação sonora até o permitiria, mas sei lá se aos meus vizinhos lhes apetece ouvir a música que eu oiço neste auditório particular. Aproveito o que tenho de bom, programação escolhida ao gosto do momento, intervalo incluído, carrego no botão no fim do último andamento antes de escolher outro CD ou atender alguma voz amiga que me procure. Sonoridades e a beleza das coisas ao meu alcance.

M      

(Excepcionalmente hoje fugi às regras dos nossos desafios: a fotografia não foi tirada por mim)

4 comentários:

Anónimo disse...

Um bom aproveitamento da audição. Só temas doces que muitas vezes não sabíamos escutar quando se vivia "normalmente"
Luisa

Mónica disse...

Bonita fotografia. Um texto à M. cheio de detalhes doces, como diz a Luísa, e a designação orelha-ninho fica mesmo bem.

Anónimo disse...

Tantos sons que se podem ouvir durante o dia. À noite é mais o som da TV.

Teresa

Justine disse...

É poético pôr ao mesmo nível o som do canto dos pássaros que nos acordam de manhã com uma sinfonia de Mahler (eu sou mais pela nº5!): ambos nos transmitem a beleza de que necessitamos para viver bem...