quinta-feira, novembro 18, 2021

6. M.

Coitados, o paladar e o olfacto são quase inexistentes em mim. Quando era criança manifestavam-se, mas nunca foram muito marcantes. Infelizmente têm vindo a perder qualidade ao longo dos anos, vale-me a memória do que cheirei e provei ou, se inspirar fortemente, com o nariz quase colado ao que me é posto à prova, consigo quase salvar o momento. Quase, digo eu, às pitadas deste ou daquele condimento especial de chefe de cozinha contemporâneo não chego. É verdade, uma pena. Um caso recorrente é sentir o cheiro de uma lareira acesa a crepitar apenas quando vejo a imagem na televisão ou no cinema. 

Por causa das minhas limitações atrás descritas, trago agora até mim o meu paladar e o meu olfacto através das memórias que deles me oferece este quadro de Maria Fernanda Amado. Pendurado que está na minha sala, olho-o e penso nele a aldeia resguardada entre montes e vales onde passava férias em criança. A minha aldeia não era exactamente assim, existiam apenas cinco casas, pintadas com cores menos exuberantes, e oito moradores permanentes que foram morrendo deixando ruínas, mas a vista que eu tinha, e tenho, do alto da estrada que desce até lá é semelhante a esta. Vejo fumo a sair das chaminés e o cheiro da chanfana e das sopas a apurar lentamente no fogão a lenha na cozinha do Senhor Américo e da Senhora Aida faz-me crescer água na boca. Ali adiante, debaixo do telheiro de nossa casa, estamos sentados à mesa de madeira tosca, saboreamos maçarocas de milho mornas, tenros os grãos ainda em leite, escorre-me a manteiga da boca, dos dedos, adoro. Colhi as espigas na caminhada matutina pelos campos, tão leve o ar, e dobrei folhas verdes dos eucaliptos para melhor lhes sentir o aroma. Tanta coisa mais encontro naquelas manchas! São mágicas.

M

4 comentários:

Licínia Quitério disse...

Um quadro (o teu) dentro do outro. E com cheiros, que tu consegues adivinhar.

bettips disse...

A magia é a do olhar, pensando em todos os outros sentidos!

Justine disse...

Quadro e texto a fazerem um hino à memória das coisas que nos ficam de infância, gravadas pelos nossos sentidos!

Mónica disse...

estamos nos antípodas quanto a cheiros e sabores, mas olha que essa maçaroca assada ou cozida barrada com manteiga é muito cheirosa e saborosa