quinta-feira, maio 24, 2012

AGENDA PARA MAIO DE 2012


Dia 31 - Fotografando as palavras de outros sobre alguns excertos do livro D. Quixote, que li há alguns anos com enorme prazer e um permanente sorriso nos lábios. Desta vez o texto proposto é um pouco mais longo do que o habitual mas foi-me difícil resistir a tamanha graça de pormenores e de ironia que a leitura do livro me ofereceu. Independentemente de complicar a resposta, claro, mas há que correr riscos. Para que os riscos outros que nos ensombram os dias sejam de algum modo assim atenuados.

«Em certo lugar da Mancha, o nome amanhã o direi, vivia não há grandes anos um fidalgo, destes velhos fidalgos de lança em armeiro, adarga antiga, pileca à manjedoira e galgo corredor. Bons três quartos do rendimento gastava-os no comer: cozido, obrigado mais vezes a vaca do que a carneiro, com o infalível empadão dos sobejos à ceia, uma fritada de ovos com miúdos e toicinho aos sábados, lentilhas às sextas, e o seu borracho extra uns domingos por outros. O resto ia-se no vestir: saio de velarte e calças de veludilho com pantufos do mesmo pano nos dias santos; a cote, saragoça, embora da mais fina.

Tinha em casa uma governanta, mais que quarentona, uma sobrinha que ainda não completara vinte anos, e um moço para todo o serviço, que largava o podão e ia selar-lhe o rocim. O nosso fidalgo andava à beira dos cinquenta. Era rijo de têmpera, seco de carnes, rosto esfalcado, grande madrugador e amigo de montear. (…)

Antes de ir mais longe é preciso que se saiba que este fidalgo, sempre que estava ocioso, e era a maior parte dos dias na roda do ano, ocupava-se em ler livros de cavalaria com tanto afinco e regalo que descurou quase totalmente o exercício da caça e o governo da fazenda. (…)

Em suma, o nosso fidalgo embebeu-se tanto na leitura, que levava as noites a ler, desde lusco-fusco a lusco-fusco (…) E assim, de pouco dormir e muito ler, aconteceu ressecarem-se-lhe os miolos e toldar-se-lhe de todo o juízo.
Povoou-se-lhe a fantasia com tudo o que lia nos romances, encantamentos, pendências, batalhas, desafios, lanhos dados e recebidos, requebros, amores, tormentos e disparates impossíveis.»

Capítulo I

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«Nisto descobriram os trinta a quarenta moinhos de vento que há naquelas paragens. Mal D. Quixote deu com os olhos neles, disse para o escudeiro:
- Estamos com sorte, muito mais sorte do que aquilo que podíamos desejar. Abre-me os olhos e repara... repara-me para aqueles trinta e tantos desaforados gigantes! Vou-me a pelejar com eles e tirar-lhes a vida. (…)
- Atente bem, Vossa Mercê. O que se descortina além fora não são gigantes, mas moinhos de vento. E o que parecem braços não são senão as velas que, sopradas pela aragem, fazem girar as mós. (...)

E assim animado, encomendando-se do fundo do coração à sua senhora Dulcineia para que lhe valesse naquele transe, bem abroquelado com a rodela, lança em riste, arremeteu a galope dobrado do Rocinante contra o moinho que lhe ficava em face. No mesmo instante mesmo a vela recebia tão furioso açoite do vento que lhe fez a lança em pedaços e, arrastando cavalo e cavaleiro, atirou-os de escantilhão pelo campo fora. Sancho Pança picou o burro na pressa de lhe acudir. O amo estava estatelado debaixo do cavalo, incapaz de qualquer movimento.»

Capítulo VIII

D. Quixote de La Mancha, (Versão de Aquilino Ribeiro), Miguel de Cervantes Saavedra, Bertrand Editora

1 comentário:

~pi disse...

:-) pobre homem... ou pobre cavalo...?






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