Dia
31
- Fotografando
as palavras de outros sobre
alguns excertos do livro D.
Quixote, que
li há alguns anos com enorme prazer e um permanente sorriso nos
lábios. Desta vez o texto proposto é um pouco mais longo do que o
habitual mas foi-me difícil resistir a tamanha graça de pormenores
e de ironia que a leitura do livro me ofereceu. Independentemente
de complicar a resposta, claro, mas há que correr riscos. Para que
os riscos outros que nos ensombram os dias sejam de algum modo assim
atenuados.
«Em certo lugar da
Mancha, o nome amanhã o direi, vivia não há grandes anos um
fidalgo, destes velhos fidalgos de lança em armeiro, adarga antiga,
pileca à manjedoira e galgo corredor. Bons três quartos do
rendimento gastava-os no comer: cozido, obrigado mais vezes a vaca do
que a carneiro, com o infalível empadão dos sobejos à ceia, uma
fritada de ovos com miúdos e toicinho aos sábados, lentilhas às
sextas, e o seu borracho extra uns domingos por outros. O resto ia-se
no vestir: saio de velarte e calças de veludilho com pantufos do
mesmo pano nos dias santos; a cote, saragoça, embora da mais fina.
Tinha em casa uma
governanta, mais que quarentona, uma sobrinha que ainda não
completara vinte anos, e um moço para todo o serviço, que largava o
podão e ia selar-lhe o rocim. O nosso fidalgo andava à beira dos
cinquenta. Era rijo de têmpera, seco de carnes, rosto esfalcado,
grande madrugador e amigo de montear. (…)
Antes de ir mais longe
é preciso que se saiba que este fidalgo, sempre que estava ocioso, e
era a maior parte dos dias na roda do ano, ocupava-se em ler livros
de cavalaria com tanto afinco e regalo que descurou quase totalmente
o exercício da caça e o governo da fazenda. (…)
Em suma, o nosso
fidalgo embebeu-se tanto na leitura, que levava as noites a ler,
desde lusco-fusco a lusco-fusco (…) E assim, de pouco dormir e
muito ler, aconteceu ressecarem-se-lhe os miolos e toldar-se-lhe de
todo o juízo.
Povoou-se-lhe a
fantasia com tudo o que lia nos romances, encantamentos, pendências,
batalhas, desafios, lanhos dados e recebidos, requebros, amores,
tormentos e disparates impossíveis.»
Capítulo I
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«Nisto descobriram os
trinta a quarenta moinhos de vento que há naquelas paragens. Mal D.
Quixote deu com os olhos neles, disse para o escudeiro:
- Estamos com sorte,
muito mais sorte do que aquilo que podíamos desejar. Abre-me os
olhos e repara... repara-me para aqueles trinta e tantos desaforados
gigantes! Vou-me a pelejar com eles e tirar-lhes a vida. (…)
- Atente bem, Vossa
Mercê. O que se descortina além fora não são gigantes, mas
moinhos de vento. E o que parecem braços não são senão as velas
que, sopradas pela aragem, fazem girar as mós. (...)
E
assim animado, encomendando-se do fundo do coração à sua senhora
Dulcineia para que lhe valesse naquele transe, bem abroquelado com a
rodela, lança em riste, arremeteu a galope dobrado do Rocinante
contra o moinho que lhe ficava
em face. No mesmo instante mesmo a vela recebia tão furioso açoite
do vento que lhe fez a lança em pedaços e, arrastando cavalo e
cavaleiro, atirou-os de escantilhão pelo campo fora. Sancho Pança
picou o burro na pressa de lhe acudir. O amo estava estatelado
debaixo do cavalo, incapaz de qualquer movimento.»
Capítulo VIII
D.
Quixote de La Mancha,
(Versão de Aquilino Ribeiro), Miguel de Cervantes Saavedra, Bertrand
Editora
1 comentário:
:-) pobre homem... ou pobre cavalo...?
~
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