quinta-feira, dezembro 13, 2012

11. Rocha/Desenhamento



Que dizer dos espelhos? Talvez que estão banalizados pelo uso quotidiano a que foram votados, embora haja situações em arquitectura, entre a função e a decoração, nas quais a sua versatilidade reflectora perante o visível complexifica, quase irrealizando, o real circular, coisas, imagens, profundidades. Se a nossa percepção, apesar de dispor de capacidades excepcionais, é selectivamente distorciva do que olhamos, do que vemos ou sabemos, obliquando o que é horizontal ou perpendicular, o enfrentamento dos espelhos como que nos faz questionar a projecção replicante das suas imagens. Quando nos olhamos e nos vemos ao espelho, o mistério do visível adensa-se (ou pelo menos complica-se): porque o espelho devolve-nos o nosso rosto, faz o nosso retrato, imóvel ou dinâmico conforme nos interrogarmos em habilidades fisionómicas. Em corpo inteiro, de frente para altos espelhos, a nossa imagem parece uma duplicação hiperrealista de Chok Close. Mas não é, talvez nem os retratos daquele pintor americano: e não é porque, ao apertarmos os dedos da mão esquerda, o espelho devolve-nos um boneco em que a mão esquerda se transforma em mão direita. O braço direito em braço esquerdo. Uma clonagem frontal, absurda e afinal reconhecível perante quem somos. E só o sabemos com a maior precisão justamente através do espelho: sem ele, seremos sempre um pouco cegos. Numa célebre pintura de Magritte, há um homem que se olha ao espelho, embora esteja representado, para nós, de costas. A expectativa automática que a experiência nos propicia leva-nos a supor que o espelho nos dará a conhecer, de frente, o homem que a pintura nos mostra de costas. Mas não: a sabedoria de Magritte apresenta-nos o reflexo exactamente como o homem se nos apresenta na representação, isto é, de costas. É na verdade uma suprema armadilha, porque esta imagem seria possível se a representação (ou a sua colocação de facto) nos aparecesse de frente, de costas para o espelho, no qual (factualmente) seria visto de costas, naturalmente com os braços trocados. Magritte usa, ironicamente, a lógica do espelho e a pintura torna-se assim, aos nossos olhos, uma espécie de espelho.

Rocha de Sousa

7 comentários:

~pi disse...

a armadilha parece-me a palavra exacta, aplicada à versatilidade e à sinergia entre o homem, o olhar do homem e os seus espelhos...

da arte... cada obra me parece um espelho polimórfico, multisignificante e infindável.







~

bettips disse...

Interessante por escolheres Magritte e o jogo que tantos de nós fazemos. Metáforica a mente e sem darmos conta, somos olhados "ao contrário", tanto pelos olhos de outros como pelos espelhos.

Luisa disse...

Que dizer desta reflexão sobre o espelho, a arte e o homem? Fica tudo dito sobre a nossa complexidade, e muito bem dito.

M. disse...

Não vivemos sem espelhos, até por vezes procuramos nos outros o nosso próprio espelho. Procura de nós, segurança, compreensão, auto-estima, realidade, apreço, entendimento, conforto, equilíbrio, força, coragem? E tantas mais perguntas haveria a fazer.

Zambujal disse...

POis é.
No espelho (como na pintura) somos nós, não só do outro lado como em simetria connosco...

Licínia Quitério disse...

Óbvia alusão a Magritte, a imagem é rica de significados. Qual de nós é verdade? A deste lado, a daquele lado do espelho? Alice passou para o outro lado, na sua curiosidade pela essência das coisas.

Justine disse...

Que dizer, então, dos espelhos?