domingo, dezembro 16, 2012

DA BELEZA DAS COISAS E DAS PALAVRAS

« (…) Uma rapariga encontrava-se de pé diante dele no meio do regato, só e imóvel, de olhar fito na lonjura do oceano. Parecia alguém que, por magia, tivesse adquirido a aparência de uma estranha e lindíssima ave marinha. As pernas compridas e esguias eram delicadas como as de um grou e também imaculadas, excetuando no ponto onde um fiapo verde-esmeralda de algas tomara a forma de um símbolo sobre a pele. As coxas, mais cheias e com a tonalidade suave do marfim, estavam despidas quase até às ancas, onde as orlas alvas das culotes se assemelhavam às plúmulas de uma penugem branca e macia. Tinha a saia azul-ardósia ousadamente arregaçada em volta da cintura, formando atrás uma cauda de andorinha. O busto era como o de uma ave, macio e delicado, delicado e macio como o peito de uma pomba de plumagem escura. Mas o longo cabelo claro era menineiro; e menineira, e tocada pelo prodígio da beleza mortal, a sua face.
Estava só e imóvel, de olhar fito na lonjura do oceano; e, quando sentiu a presença dele e a reverência nos seus olhos, fitou-o por sua vez, como que a resignar-se silenciosamente àquela contemplação, sem vergonha nem malícia. Durante muito, muito tempo, ela suportou o olhar dele, e depois, silenciosamente, desviou os olhos dos dele e volveu-os na direção do regato, agitando suavemente a água com o pé para cá e para lá. O primeiro ruído ténue de água a marulhar brandamente rompeu o silêncio, abafado e ténue e sussurrante, ténue como o retinir das campainhas do sono; para cá e para lá, para cá e para lá; e uma chama ténue estremeceu-lhe na face. (…) »
Retrato do Artista quando Jovem, James Joyce, Relógio D' Água Editores, tradução de Paulo Faria, 2012

6 comentários:

Licínia Quitério disse...

"Era nas tardes de calor que a podiam ver sentada na beira do lago, um chapéu de palha a cobrir-lhe a cabeça, uma perna pendente a baloiçar devagarinho, as mãos sobre o colo, num abandono de sesta. Indiferente a quem passava, atenta aos peixes, nos seus movimentos rápidos, de sentidos imprevisíveis, provocando pequenas turbulências, remoinhos, ondulações, desassossegos na mansidão da água. Um movimento contínuo, silencioso, fresco. Via-os crescer, encorpar nas suas peles esverdeadadas, ou douradas, ou negras, ou vermelhas, ou feitas de muitas cores. Ninguém a conhecia. Passaram a chamar-lhe a senhora dos peixes. Nunca lhe ouviram uma palavra. Talvez fosse muda, como os peixes, e se entendessem na comum mudez. No fim do verão deixou de aparecer. O lago parecia mais triste sem a senhora dos peixes com o seu chapéu de palha e a perna baloiçando devagar. Ninguém soube explicar como no meio do lago nasceram duas hastes de bambu que cresceram muito segundo a sua condição de elegância e resistência. Uma delas, apenas uma, a meio da tarde, houvesse vento grosso ou aragem fina, bamboleava-se por uns instantes, devagar, para cá, para lá, enquanto os peixes descreviam círculos como danças em redor das torres finas, verdes, silenciosas. Ao crepúsculo, um olhar mais atento podia ver uma sombra projectada na fundura do lago, cuja forma, dizia-se, se assemelhava a um pequeno chapéu. Só os peixes poderiam desvendar os mistérios do lago, mas eles não falam e, se é verdade que não dormem, não têm sonhos, os peixes. Deixam essa tarefa para as senhoras que aparecem e se sentam e balançam uma perna e depois desaparecem quando crescem novas hastes de bambu."

Retrato da Artista já Velha, Lily Regozijo, Edições Cádacasa, intraduzível

Qualquer semelhança é puro delírio de escrevente.

bettips disse...

James Joyce foi sempre para mim um enigma. Talvez porque comecei pela ENORME obra de "Ulisses" e me enredei no irlandês comum que saiu para comparar "kidneys for breakfast" e não voltou; e num dia só fez toda a trajectória mitológica/factual de Ulisses e Ítaca - a tradução (antiga) também seria má, quiçá?
Aqui encontro-o com as palavras soando como uma harpa, visualizo a cena com a tepidez e as cores de um quadro.
"acrescentando-me", of course, my dear!
Bj

jawaa disse...


Faz falta aqui aquela imagem linda de chapéu da M., que usava quando a «conheci».

Justine disse...

Um livro admirável,que li há "séculos" e que soube bem relembrar!
(Betty, gabo-te a paciência, leres o "Ulisses":))))

Rocha de Sousa disse...

Joyce também funciona aqui como a
evocação de um tempo de certas lei-
turas que vieram marcar outras con-
cordantes escolhas. Reli há pouco
A Morte Feliz, do Camus e descobri
uma poética mais aberta do que em
algumas das suas obras maiores.

Rocha de Sousa disse...

Joyce é bem o exemplo da lembrança
literária que deixa marcas e ima-
gens inapagáveis. Muito depois de o ler, reli há pouco "A Morte Feliz",
de Camus, e descobri um «efeito» do
tempo e dos compromissos: uma es-
crita mais aberta, melódica, como
que prévia às duras provas de
"O Estrangeiro" e "A Peste"