Ter nascido e crescido à vista e à sombra de um monumento destes alguma influência há-de ter na pessoa que sou e no modo como vejo a vida. Eu já sabia muita coisa sobre a história do colosso, tal como a aprendi na escola, nos velhos, nos livros. Sabia que tinha sido construído por capricho ou vontade de um rei que eu considerava ser da minha terra. Sabia das histórias de fantasmas como a do capitão-sem-cabeça e das ratazanas gigantescas nos esgotos, ameaçando invadir a vila. Sabia chamar "musaninhos" às salas com janelas ovaladas lá no alto. Sabia o que eram escadas de caracol quando subia até à torre para ver um amigo tocar os carrilhões. Sabia histórias dos santos de pedra, com pés enormes para os meus olhos de menina de metro e pouco. Havia os amigos que moravam "lá dentro" e os que eram cá "de fora". Conhecia cantos escusos que não eram dados a conhecer a visitantes. Ficaria horas a falar do tempo em que eu e o convento nos entendíamos, como menina e casa grande que lhe escuta os segredos.
Um dia apareceu um livro que pôs lá dentro o meu convento e o levou a correr mundo. Fiquei tão orgulhosa. Li o livro com encantamento, com pressa. Eu sabia que a minha casa grande um dia havia de ser falada. Corri ao encontro do autor. Precisava de lhe dizer: "Gostei que me tivesse ensinado a ver Mafra sem o convento. Agora olho para o monte antes dele e consigo pensar-me doutro modo". Saramago ouviu-me, fez um sorriso de boca fininha, fixou-me por breves segundos e deu-me um autógrafo: "À Licínia que é de Mafra”
É bom saber o nome da nossa pedra-mãe.
Licínia
6 comentários:
Sim, entendo-te. Porque Mafra para ti foi e é muito mais do que para quem lá vai de passagem. Gostei em particular da tua expressão "Saramago ouviu-me, fez um sorriso de boca fininha". Tal e qual. Imagino a cena e o prazer do encontro entre ambos.
Não percebi muito bem, trata-se do memorial do convento autografado pelo Saramago?
Mónica, "Memorial do Convento", claro. O texto faz parte da nota introdutória do meu livro cuja capa publiquei.
Uma Mafra especial para quem lá sempre viveu
Luisa
Um convento com tantos segredos por desvendar. É um complemento fundamental ouvir o som do carrilhão.
Teresa
Tão bela esta descrição, da menina e da mulher adulta.
Mafra só me lembrava "tropa" pela interposta pessoa que conheces e tem fotografias assombradas dos exercícios, nas paredes...
Enriqueci a ideia do Convento com o livro-história-antiga. E com as pessoas que visitei e por aí encontrei. Um lugar onde viveria feliz.
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