sábado, julho 21, 2007

Um livro que me encanta. Pela simplicidade da escrita e pela poesia que nele se sente.

«No porto de Agulhas tento comprar peixe aos pescadores que regressam da pesca. Não podem vender, têm um acordo de exclusividade com o dono da fábrica de congelação de peixe, que é também o dono das embarcações, e das redes, e da lota. Encostado ao portão da fábrica, o homem olha-me com suspeição. Os pescadores estão todos de galochas, fatos-macacos, camisolas de lã. Reparo na precariedade do bote que trazem a peso pela rampa acima, e pergunto se sabem nadar. Encolhem os ombros, não sabem.

(…)

Ao largo, vejo os botes dos pescadores, pontos pequeninos de preto contra o azul-cinzento deste fim de Atlântico e princípio de Índico. Ou o contrário. Onde começam os mares? O que sentem os pescadores lá fora − que transitam entre mares que acabam, ou entre mares que começam?
Penso na indiferença dos pescadores pela própria segurança. Não sabiam nadar, responderam. Como se explica o desleixo daqueles pescadores pela própria existência? Talvez uma falta crónica de alternativas profissionais, que os encerra na infalibilidade de viver, e um dia morrer, no mar. Ou talvez uma razão histórica, imposta pelo regime do apartheid, onde ao homem negro não foi permitido conhecer outros horizontes culturais.
Gostaria de tentar perceber a resposta desta pergunta. Ao fim da tarde, regresso ao porto de pesca. Os pescadores estão lá. Reconhecem-me e acenam. Aproximo-me. Estão podres de bêbados. Recordo então o dia de hoje: sexta-feira. Sorriem, apontam a garrafa. Explicam, a rir: “Bebemos hoje porque não sabemos se estaremos cá amanhã.” Como resposta, serve. Viro as costas aos dois mares, e aos que neles pescam. Viro as costas ao Sul, continuo a viagem.»


África Acima, Gonçalo Cadilhe, Oficina do Livro

4 comentários:

jawaa disse...

Obrigada pela lembrança, realmente tudo me é familiar. Uma boa sugestão de leitura mas não para as férias, que servem para esquecer o que dói.
Uma vez mais obrigada pelo carinho da mgm e... boas férias para ti!

Frioleiras disse...

As tuas palavras...
inspiram , indicam outras palavras... livros que nos iluminam !

Um beijo, de fim de semana,
frívolo...
mas um beijo ...
para ti.

F.

Maria Manuel disse...

Estou ainda a lê-lo, saboreando devagar os bocadinhos que lhe dedico... Sabe-me bem! :-)

Manuel Veiga disse...

anotei. não conheço o autor, mas fiquei com apetite...