quinta-feira, abril 07, 2022

4. Licínia

                                      BRINQUEDO

Carvão era o combustível. Incandescente quanto bastasse. De vez em quando esmoreciam as brasas. Era preciso agitar o ar com o abano, abrir as goelas do ferro. Longe da roupa, não fosse saltar faúlha. O melhor carvão era o de sobro, ou o de azinho. Madeiras feitas com demora de anos, de seivas muito elaboradas. A Mãe passava na tábua de madeira, forrada a cobertor velho, com capa de algodão branco ajustada por fitas de nastro. Era uma pena quando, por momentânea distracção, o ferro vazava o calor excessivo e gravava na alvura um triângulo acastanhado. A miúda gostava de observar as manobras. O olho aceso do carvão, os gestos leves e exactos das mãos da Mãe na condução do ferro, no alinhar da roupa, o calorzinho húmido em redor da tábua, em redor da Mãe. 
Deram-lhe um ferro de engomar, a sério, só que mais pequenino, que as mãos dela ainda alcançavam pouco mundo. Não, não era um brinquedo. A Mãe punha lá dentro carvõezinhos em brasa e deixava-a passar a roupa da boneca, num banquinho baixo, ao lado da tábua alta. Ainda hoje se lembra do silêncio entre as duas, ponteado pelo tilintar dos ferros, a assentarem nos descansos, no compasso da chegada e partida das peças. Trabalhos de mulheres...

Licínia

7 comentários:

Justine disse...

O teu texto é um primor, Licínia! E transportou-me para casa de uma tia, onde esse trabalho de mulheres era semelhante e onde eu adorava participar...

Mónica disse...

"de pequenina se torce a pepina" o texto é bonito.

Anónimo disse...

O que eu sonhei por me darem um ferro pequeno como o teu. Mas não, apenas consegui um de lata.
Luisa

M. disse...

Perfeito! Estou a ver a cena.

Zambujal disse...

Um belo texto. De infância. Fe menina!

Anónimo disse...

Bonito texto.
Também tive um ferro pequeno como o da foto, mas não era para utilizar. Apenas para enfeitar.

mena maya disse...

calculo a tua felicidade!