domingo, janeiro 28, 2007

Ainda o medo...

«Era uma vez um rapaz chamado João que vivia em Chora-Que-Logo-Bebes, exígua aldeia aninhada perto do Muro construído em redor da Floresta Branca onde os homens, perdidos dos enigmas da infância, haviam estalado uma espécie de Parque de Reserva de Entes Fantásticos.
Apesar de ficar a pouca distância da povoação, ninguém se atrevia a devassar a floresta. Não só por se encontrar protegida pela altura descomunal do Muro, mas principalmente porque os choraquelogobebenses − infelizes chorincas que se lastimavam de manhã até à noite − mal tinham força para arrastar o bolor negro das sombras, quanto mais para se aventurarem a combater bichas de sete bocas, gigantes de cinco braços ou dragões de duas goelas. Preferiam choramingar, os maricas!, agachados em casebres sombrios, enquanto lá por fora chovia com persistência implacável (como se as nuvens estivessem forradas de olhos) e dos milhares e milhares de chorões − as árvores predilectas dessa gente − pingavam folhas tristes. Tudo isto incitava os habitantes da aldeia a andarem de monco caído, sempre constipados por causa da humidade, e a ouvirem com delícia canções de cemitério ganidas por cantores trajados de luto, ao som de instrumentos plangentes e monótonos.

O único que, talvez por capricho de contradizer o ambiente e instinto de refilar, resistia a esta choradeira pegada, era o nosso João que, em virtude duma contínua ostentação de bravata alegre e teimosa na luta, todos conheciam por João Sem Medo.

Ora um dia, farto de tanta chorinquice e de tanta miséria que gelava as casas e cobria os homens de verdete, disse à mãe que, conforme a tradição local, lacrimejava no seu canto de viúva:

− Mãe: não aturo mais isto. Vou saltar o Muro.»


Aventuras de João Sem Medo
, José Gomes Ferreira, Publicações Dom Quixote

3 comentários:

Anónimo disse...

Ainda bem que trazes aqui um texto desse grande escritor portugu^s tão esquecido injustamente, mas que pessoalmente tanto gosto.
Bjs
TD

Licínia Quitério disse...

Uma ternura de livro. Para adultos-crianças.

bettips disse...

Revemo-nos aqui, neste português impecável ...nesta pintura de gentes que somos ainda! Obg e Abç